Bastava o Zé Louco sentar no banco de madeira do posto de combustíveis da Parada 59 de Cachoeirinha, na Região Metropolitana, para logo ganhar dois pastéis e um copo de refrigerante. O lanche era compartilhado com os fiéis companheiros Saddam e Bush, dois vira-latas que o acompanhavam pelas ruas da cidade. Zé Louco era o morador de rua José Antônio Dias da Costa, cuja morte na quinta-feira passada, aos 64 anos, levou a prefeitura a decretar luto oficial de três dias para homenageá-lo.
Figura considerada folclórica em Cachoeirinha, Zé Louco havia abandonado as ruas cerca de três anos antes, quando voltou a morar com familiares no bairro Vista Alegre. Porém, jamais foi esquecido por quem o ajudou ao longo das quatro décadas em que peregrinou entre as paradas 51 e 60 da Avenida Flores da Cunha. João Alanir Thiesen, 74 anos, um dos donos do posto da 59, lembra com carinho do amigo.
— Ele chegava de mansinho, sentava ao meu lado no banco e apertava a minha mão. Sempre sorrindo, dizia que tinha fome. Eu saía e buscava algo para ele comer. Tinha que trazer sempre em dobro porque ele não comia se não compartilhasse com os dois cachorros. Era uma pessoa 100% bondosa. Vou sentir falta dele neste banco — relata, emocionado.
Natural de Santo Antônio da Patrulha, Zé Louco teve meningite aos oito meses de vida. A doença deixou sequelas motoras e cognitivas. Aos 15 anos, passou a viver na rua e ficava vagando pela Avenida Flores da Cunha. O apelido veio em seguida porque, sem qualquer explicação, ele corria atrás dos ônibus por cerca de cinco quilômetros, até a divisa com Porto Alegre. Passava os dias assim. Para voltar para casa, era preciso que o pai, Protásio Dias da Costa, o convencesse. Depois da morte do patriarca, há 25 anos, Zé passou a ficar mais tempo longe da família. Certa vez, permaneceu nove meses sem voltar. Diariamente, à distância, a irmã, a dona de casa Tânia Costa Araújo, 52 anos, e o marido, o motorista Joeni Ramos de Araújo, 55 anos, seguiam os passos dele.
— A gente nunca deixou de acompanhá-lo, mas respeitávamos a vontade de querer ficar no mundo. Sabíamos que estava sendo bem cuidado por todos — afirma Tânia.
Zé ficou conhecido em Cachoeirinha por gostar de ver as ruas limpas — sempre com uma sacola nas mãos, recolhia o lixo que via pela frente —, pela simpatia que lhe era peculiar e pelo bordão "Cachaça não", seguido de uma gargalhada.
— Quando a gente perguntava o que era bom para a gripe, ele respondia "a manga" e, rindo, sinalizava como se estivesse limpando o nariz na manga da camisa. A gente sempre ria junto com ele — comenta Joeni.
Mesmo vivendo na rua, Zé tinha até uma cama disponível numa sala do posto de combustíveis da parada 51, mas ele preferia dormir no chão do prédio da troca de óleo. Eram os funcionários do estabelecimento que colocavam os papelões e cediam roupas de cama. Nos dias mais frios, recebia cobertores limpos.
— Gostava de ficar coberto pelos próprios cachorros — justifica o chefe de pista Alexsander Moraes, 33 anos.
Por volta das 6h, quando o serviço abria as portas, era convidado a deixar o quarto improvisado. Ele saía, tomava café numa padaria próxima, e voltava, até esperar pelo almoço — doado por um restaurante da redondeza. No posto, passava os dias tomando chocolate quente, a bebida favorita. Quando inventava de ficar sem banho, o então gerente Nildo de Vargas, 48 anos, hoje trabalhando numa filial de Canoas, o convencia a fazer a higiene no vestiário dos funcionários.
— Cheguei a dar banho nele. Era uma criança grande. Não deixávamos ele ficar sujo por aí. As lojas próximas doavam roupas novas quando sabiam que era para o Zé — comenta Nildo.
Certa vez, Zé decidiu ficar um tempo em casa e não avisou aos amigos. Correu pela cidade o boato de que ele havia morrido. Quando voltou para as ruas, chegou com novo bordão.
— Ele veio gritando "o Zé não morreu! O Zé não morreu!", igual ao personagem de uma novela da Globo que ficava dizendo "Jamanta não morreu! Jamanta não morreu!" — Nildo lembra, rindo.
Mesmo depois de ter sido transferido para outra cidade, Nildo jamais deixou de procurar o amigo. Com a mulher, o visitou diversas vezes na casa da família. Para ajudá-lo, contribuía com roupas e cesta básica. Ao saber da morte dele, fez questão de participar do velório. O considerava como um irmão.
Zé tinha problemas de circulação e, por isso, nos últimos anos, caminhava com dificuldade. Foi quando, a pedido do Ministério Público, a família o acolheu com a matriarca, Teresinha da Costa, e Tânia — que morava no mesmo pátio. Em casa, gostava de varrer e de lavar a louça. O passatempo favorito era jogar bola com o sobrinho Thiago, hoje com cinco anos, neto de Tânia. Somente o menino tinha a permissão de Zé para tocar no brinquedo. Depois da morte dele, a bola ficou com Thiago.
A morte da mãe e a saudade
Em 11 de fevereiro deste ano, Teresinha morreu vítima de uma pneumonia. Todos os dias, Zé olhava no relógio e perguntava quando a mãe voltaria. Sentia saudade. Uma semana depois, foi internado com insuficiência respiratória. Recuperado, voltou a ser internado dias depois. Primeiro, no Hospital Padre Jeremias, onde ficou um mês. Depois, no Hospital Vila Nova, em Porto Alegre, onde morreu na semana passada.
Sepultado no Cemitério Municipal, Zé recebeu homenagens de pessoas que nem mesmo a família conhecia. A comoção geral surpreendeu a irmã e o cunhado. O ato mais incomum, destacado pelos familiares, foi publicado na edição extra do Diário Oficial da cidade, quando o prefeito Miki Breier decretou luto oficial. No Facebook, Miki justificou o ato: "O amigo Zé Louco era o personagem mais conhecido e querido da cidade. Decretamos luto oficial pelo símbolo de alegria e inocência que ele traduzia pelas ruas da cidade. Sua principal qualidade foi tratar a todos com respeito e igualdade. Partiu como um ícone da cidade!".
Aos mais próximos, às gargalhadas, Zé negava o apelido pelo qual ficou conhecido na cidade e sentenciava: "Zé não é louco, Zé é malandro!". Desta vez, os amigos dizem que ele abusou da própria malandragem. Assim como fazia quando sumia das ruas enquanto ficava na casa dos parentes, Zé foi embora sem se despedir.