Na terra do Laçador, de Renato Borghetti e do primeiro Centro de Tradições Gaúchas, um gaiteiro que toca músicas de Anitta e Lady Gaga, sucessos como Despacito e a trilha sonora da série americana Game of Thrones chama atenção em Porto Alegre.
Seu palco? A rua. Mais precisamente o Brique da Redenção, um dos pontos mais tradicionais e visitados da capital gaúcha. O porto-alegrense Philipe Philippsen, 29 anos, não precisa de muito para chamar atenção do concorrido espaço de lazer para onde vão milhares de gaúchos aos fins de semana. Duas garrafas d'água, uma folha impressa com seu nome e endereço da sua página no Facebook, clips, uma gaita, um estojo para guardar seu instrumento e um chapéu contendo R$ 9 e US$ 1.
Ator, músico e bailarino, o jovem artista de rua tem experiência internacional – já se apresentou em Nova York e Munique. Mas é em Porto Alegre que se sente mais à vontade para cativar e encantar seu público. O gosto pela arte começou cedo, no teatro – adolescente, já participava de peças. Aos 17 anos, durante um ensaio, uma memória o aproximou do instrumento que viraria identidade:
— Eu lembrei, não sei por que, de uma visão de ser criança na casa dos meus avós e ter uma maleta que eu não poderia abrir. Tinha uma coisa muito especial lá dentro, colorida, com botões. Aí perguntei para a minha mãe: "Tem um acordeon na casa do vô e da vó?" Ela respondeu que eles tocavam, mas não deviam ter mais. "Devem ter dado, vendido". Liguei para o meu avô e ele tinha ainda. Ele me deu e fui tocar no teatro. Então comecei a pensar um pouco fora da caixa, tocar no acordeon músicas que não foram feitas para gaita.
Aos 22, formado em Teatro na UFRGS, Philipe se mudou para os Estados Unidos. Trabalhou durante um ano como professor de inglês em Porto Alegre, em 2010, para conseguir viver quatro meses em Nova York. Com a gaita a tiracolo, morou em um hostel. Começou a tocar versões de músicas famosas para os hóspedes. Depois de um tempo, ainda inibido, decidiu mostrar seu talento.
— Eu até fui para a rua, mas eu ainda estava tímido. Eu tocava pra mim mesmo. Não tinha essa coragem e cara dura que precisa ter para estar na rua e olhar no fundo do olho da pessoa e cantar uma música que ela não estivesse esperando — disse.
Foram na Times Square que outros artistas o encorajaram a mudar o repertório, só instrumental, e apostar no inusitado:
— Me diziam "tu tem que tocar Lady Gaga, que quando tu toca dá dinheiro". Daí eu dizia que não. Então eles disseram "tá, agora vamos te pedir uma música. Vamos ser teu público. Vamos dar dinheiro no teu chapéu. Toca Lady Gaga". Eu toquei e foi um sucesso.
Ele conta a história até hoje durante os shows, sempre que alguém pergunta por que há US$ 1 no seu chapéu.
— Tem pessoas que tem um dólar na carteira para chamar dinheiro. Eu tenho no chapéu por isso, mas também para lembrar dessa história, que é muito importante para mim.
"Nunca digo quanto eu ganho no chapéu porque é o meu chapéu"
Aliás, o chapéu. Você já ouviu essa expressão? Para os artistas de rua, o chapéu é um portal entre o público e o artista, como descreve Philipe. É através dele que o profissional é avaliado. E o chapéu pode ser só um termo mesmo, pois há artistas que oferecem uma caixa ou um estojo de instrumento musical como local para receber as contribuições espontâneas de seus públicos. E é possível sobrevier fazendo arte na rua? Com a palavra, o artista:
— O chapéu é muito bom em Porto Alegre. Era bom em Nova York. Era bom em Munique. Tem dias bons e ruins. Eu nunca digo quanto eu ganho no chapéu porque é o meu chapéu. Sempre que alguém me pergunta quanto dá um chapéu eu digo "faz a tua performance. Toca ali e descobre". O teu chapéu vai ser diferente do meu e o meu chapéu numa segunda-feira vai ser diferente da quarta e do domingo. Eu saio de casa sem saber quanto eu vou ganhar. Mas eu sei que a rua é mais que só chapéu. As pessoas me veem tocando, me contratam para shows, me chamam para uma entrevista. Movimenta um mercado que é mais do que só o que eu faço na rua. É uma vitrine para me chamarem para outros trabalhos.
As dificuldades existem e não são poucas. A chuva, às vezes o frio, o forte calor, a concorrência com vendedores ambulantes, a crise econômica: tudo pode ser motivo para não conseguir um bom dia de trabalho. O artista de rua precisa estar preparado para saber driblar as adversidades, opina.
— Em Munique eles têm umas regras. Tem que pedir autorização às 8h, pagar 10 euros para trabalhar naquele dia. No outro dia tem que pagar de novo. Isso é uma dificuldade que em Porto Alegre eu não tenho. Em Porto Alegre a dificuldade é de espaço. Às vezes tem muitos vendedores tomando espaço. Às vezes tem artistas que põem som muito alto e tomam um raio que é muito maior do que o show deles. Mas aí cria-se um diálogo. É a construção de uma civilidade.
E há também os obstáculos criados pelas prefeituras. Em Porto Alegre, porém, desde 2014, existe a lei do artista de rua, que permite manifestações culturais em espaços públicos como praças, largos e ruas.
— Os governos tinham que entender que eles precisam dos artistas de rua. Por mais que não contratem essas pessoas, precisam dar o amparo para que elas possam contribuir para a construção do espaço público, com a beleza da arte, com o posicionamento político.
Diferencial do músico, o repertório não é fixo: também varia conforme o humor das ruas. O que se mantém é a proposta pop, de sucessos da atualidade – rara quando se pensa em um instrumento que simboliza a música gauchesca.
— A rua é um termômetro dela mesma. Faz sucesso, fica. Eu comecei a tocar uma vez Mamma Mia, do Abba. Eu achei que as pessoas não iam ligar e as pessoas adoraram. Então ficou. Tocava Bruno Mars, em Nova York bombava. Aqui não ligavam muito. Eu presto atenção na energia corporal das pessoas. Se estão animadas, filmando, ou não estão com interesse. Às vezes eu esqueço de tocar uma música que está no meu repertório. Aí chego em casa e lembro: "Bah, não toquei Bruno Mars". De repente é porque Bruno Mars tem que cair fora. Eu vou me escutando.
E daqui a 10 anos? Por onde estará Philipe Philippsen?
— Mais sábio, mais velho, talvez com uma gaita nova, talvez com uma banda me acompanhando. Eu componho músicas e não mostro. Eu tenho muita vontade de fazer um show com músicas minhas. Tenho que parar de pensar muito e ir lá e fazer. Chamar uma galera e tocar. Fazer um show. Gravar um CD.
O projeto Saltimbancos de GaúchaZH vai trazer, toda sexta-feira, vídeos de artistas de rua de Porto Alegre e contar suas histórias. Acompanhe!