Chegando na José Bonifácio, Philipe tira da mochila duas garrafinhas de água e o acordeon que herdou do avô. Atrai olhares curiosos quando abre o fole, e logo faz umas 30 pessoas pararem ao seu redor. No segundo hit do repertório – "do primo da Daniela Mercury, o Freddie" –, já conquistou cerca de 60 passantes. Música após música, ele vai provocando risadas com suas brincadeiras, e o público vai colocando R$ 2, R$ 5, R$ 20 no capacete da bicicleta que usou para ir até lá.
Philipe Philippsen é um exemplo do quão animado e democrático é o "chapéu" no Brique da Redenção. Os cerca de 750 metros da Avenida José Bonifácio se transformam em super palco aos domingos, com apresentações solos, de duos, de bandas, e de tudo o que é tipo de música. A quantidade de músicos é justificada pelo público. Segundo os artistas, quem vai até o parque parece disposto a muito mais do que comprar objetos decorativos e comer churros: quer espetáculo.
– Não tem lugar como o Brique. As pessoas querem ver performances aqui – resume Philipe.
Além de prover o sustento de artistas de rua, a feira é também o primeiro palco de muitos talentos da cidade. Um dos mais recentes é o duo Petit Poá, que há pouco mais de meio ano leva à José Bonifácio releituras de músicas em francês – além de uma parafernália que inclui banquinho, teclado, microfone e pedestal, duas caixas de som e um motor de carro dentro de um carrinho de feira. A cantora Kézia Borba Borges garante que a árdua logística é recompensada porque "tudo é mais livre no Brique".
– Sempre tem alguém que dança, sempre tem alguma criancinha que vem conversar, sempre tem alguma coisa que acontece de diferente – observa.
FOTOS: em imagens, veja os artistas do brique
VÍDEO: as histórias de quem leva música ao Brique da Redenção
Que digam os jovens do Cartas na Rua. A banda que toca uma mistura de folk, country e bluegrass dividiu a atenção das câmeras de smartphone com a pequena Anita no domingo em que a reportagem esteve no Brique. A menina de um ano e meio – e vários rabicós no cabelo curtinho – furou o círculo imaginário ao redor da banda para dançar e pular junto dos músicos, ignorando cada uma das tentativas da mãe, Grasiela Vidor, 28 anos, de tirar-lhe dali.
– Isso é o mais legal, acaba que tu não tens controle do que vai acontecer – diz o músico Pedro Ourique. – De repente é a primeira vez que a criança vê um show ao vivo.
Integrante de uma banda que hoje consegue tirar seu sustento da rua, Pedro acredita que o relógio funciona diferente no Brique.
– É como se fosse um outro mundo, que não aquele agitado que a gente vive todos os dias – diz ele.
Conheça alguns dos artistas que fazem a trilha sonora desse lugar:
Tocando Lady Gaga e mudando o mundo
Vestindo calça jeans, camiseta preta e tênis florido, Philipe Philippsen, 28 anos, toca sucessos do pop com um instrumento improvável: o acordeon. A primeira música que canta, sempre, é da Lady Gaga.
Os espectadores atentos veem de cara qual é a maior influência do cantor e instrumentista – a postura adotada por Philipe remete a Nico Nicolaiewsky, que se consagrou com o espetáculo Tangos e Tragédias e morreu vítima de leucemia em 2014. Supersticioso, após escolher um lugar no brique, o jovem coloca nove reais para inaugurar o chapéu. Põe também um dólar para lembrar da sua estreia na arte de rua: ele começou seu show em 2012, na Times Square, em Nova York. Desde então, se apresentou nas ruas de Paris, Berlim e Lisboa também.
– Mas a minha casa é o Brique – diz o rapaz, que toca há quatro anos no local.
Philipe, que já é reconhecido na rua como "o cara do Brique", também usa as suas duas horinhas de fama para passar mensagens que acha válidas. Por exemplo, prega contra a homofobia e "essa ideia maluca de cercar o parque".
– É difícil ter a atenção de um centena de pessoas. E eu uso isso pra mudar o mundo um pouco, do jeito que eu puder.
Um pedacinho de Paris na José Bonifácio
Quem ouve a voz doce de Kézia Borba Borges pode achar que o Brique se mudou para Paris. Ao lado do tecladista Jackson Spindler, 31 anos, a jovem de 24 anos integra o Petit Poá, uma banda que, na Redenção, se apresenta como duo. A proposta é fazer releituras de músicas em francês.
– Não são só músicas de bandas da França, mas também tocamos canções em francês de artistas americanos, do Cabo Verde, da Bélgica... – explica Jackson.
Kézia estuda a língua há sete anos, em razão de seu interesse pela cultura, história e cinema da França. No ano passado, os dois fizeram uma viagem pelo país. Eles começaram o projeto em outubro, e fizeram sua estreia ao público justamente no Brique, em novembro.
Enquanto a carreira de Jackson é baseada na música – ele é também professor de teclado –, Kézia vive uma espécie de dupla identidade. Ela é cantora nos finais de semana, seja em barzinhos ou no Brique. Em dias úteis, trabalha assessorando um juiz no Tribunal Regional de Trabalho. Uma rotina "totalmente diferente".
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– No tribunal, desempenho um papel mais burocrático. Aqui, exerço um lado mais criativo, um lado artístico que gosta de extravasar – diz a bacharel em Direito.
Os arranjos da Petit Poá puxam para o blues e o jazz, os estilos que a dupla mais gosta. Kézia aproveita breves pausas no show para dar uma explicação do que vai cantar – como na música Paris, que fala sobre uma pessoa que "encheu o saco" da capital francesa e resolveu ir embora.
Segurando a cuia do chimarrão, o técnico mecânico Sandro Juchem, 43 anos, assiste a tudo encantado. Embora não seja o estilo musical que costuma ouvir, calcula que já tenha prestigiado o duo "umas 25 vezes".
– É um sopro de ar fresco – define.
A "trilha sonora da Corrida Maluca"
Quatro rapazes com barbas exóticas tocando violão, baixo, bandolim e banjo são responsáveis por uma das maiores rodas de público do Brique. Eles são a banda Cartas na Rua, que mescla folk, country e bluegrass, estilos desconhecidos de muitos brasileiros.
– Parece aquelas trilhas sonoras da Corrida Maluca – comenta uma mulher aos amigos ao passar pelo grupo.
O grupo faz alguns sons autorais, além de versões das bandas que gostam nos referidos estilos – como Beatles, Johnny Cash e Rolling Stones. O nome da banda é uma derivação do primeiro grupo que formaram, Cartas para Bill – um trocadilho com o sobrenome do baixista, Jean Kartabil. Quando os jovens de Cachoeirinha, Gravataí e Sananduva resolveram se apresentar na rua para tentar viver de música, adequaram o nome do grupo à nova proposta.
– Sempre que estamos em Porto Alegre e não chove, viemos aqui no final de semana – diz Jean. – Tentamos levar um pouco de cultura da forma mais democrática, de criança a idoso.
Uma das coisas que os integrantes da Cartas na Rua valorizam no Brique é a troca com outros artistas. No dia 9, a apresentação contou com participação especial do Maneco Rocha, tocando seu washboard (tábua de lavar, em inglês), e ao verem que o acordeonista Philipe Philippsen os assistia, convidaram-no a se juntar ao grupo.
– Isso fortalece a classe dos músicos de rua, as amizades e o respeito – diz Pedro Ourique.
Um inventor no Brique
Cinésio Teixeira jura que é o único músico a tocar bandok no universo. Até porque se trata de um instrumento que ele mesmo inventou. Como as guitarras de dois braços que Jimmy Page imortalizou no Led Zeppelin, o objeto de um só corpo e dois braços une um bandolim e um cavaquinho. E também levou ao nome artístico do músico: Cinésio Bandok.
O porto-alegrense de 63 anos, que já tocou em bandas de baile, diz que teve a ideia enquanto andava de ônibus na Restinga.
– Eu era assaltado sempre. Com um instrumento em cada mão, os caras pegavam o dinheiro e eu nem tinha o que fazer. Daí surgiu a ideia de juntar os dois, para eu ficar com uma mão livre para pegar eles – conta, bem-humorado.
Entre um Roberto Carlos e um Frank Sinatra, Cinésio sempre tem uma piada de tiozão para divertir sua plateia. Arranca risadas ao procurar marmanjos que dariam-lhe um bom amante. Até na hora de agradecer a quem põe uma nota em seu "chapéu" – uma lata de chocolate que ganhou da mãe quando tinha 22 anos –, apela para irreverência:
– Deus te abençoe e te dê uma penca de filhos.
Para ele, o Brique traz sustento e a possibilidade de se apresentar para um público culto. No dia 9, espontanemente, ele acabou ganhando a companhia de um coral de verdade. Jovens do coro da Furg se empolgaram enquanto ele tocava Merceditas: pararam ao lado de Cinésio e cantaram a música de cabo a rabo. Ao ouvir que no grupo tinha uma paulista e uma carioca, ele já emendou o hino do Corinthians e do Flamengo – sem saber que homenageava uma são-paulina e uma vascaína.
– Só deu bola fora – riu o estudante Dilan Pinheiro, 20 anos.
Um só homem, uma banda inteira
Quem ouve o seu nome, acha que é o elenco de um espetáculo inteiro – Mauro Lauro Paulo. E, no fim das contas, não se engana. O artista circense de 34 anos é o Homem Banda do Brique da Redenção, tocando sozinho e ao mesmo tempo uma mini-bateria (que fica pendurada nas costas, como uma mochila), acordeon, gaita de boca, algumas buzinas, apitos e chocalhos.
A julgar pelo cenário produzido por Mauro na Redenção, dá pra ver que não é coisa de amador. Ele dispõe uma série de banquinhos em círculo, delimitando o picadeiro, e também instala no local uma espécie de portal com cortinas vermelhas, como se fosse um circo. Nascido em Dom Pedrito, o artista diz que já leva o Homem Banda há 10 anos ao público do parque.
Mauro encontrou a inspiração para seu personagem musical durante as andanças com o circo pela Bahia. Conheceu um alemão que fazia o número, e resolveu fazer também. Ele vai acionando os instrumentos nas costas meio de cordas amarradas aos pés e cotovelos, além de tocar o acordeon, assoprar nas buzinas, cornetas e apitos que têm pendurados na sua frente, chacoalhar os chocalhos do tornozelo e cantar também. Fala disso como se fosse coisa muito fácil.
– Tudo é prática. É como qualquer outro instrumento, nada absurdo.
Os preferidos da melhor idade
Justamente a banda com maior média de idade é a que mostra ter mais disposição e fôlego. A Geraldo Show costuma tocar de manhã até de tarde. E sem repetir o repertório, garante o líder, Geraldo de Souza Lopes, músico há 58 dos seus 67 anos. Rindo, ele lembra de sua estreia nos palcos, ainda criança, tocando cavaquinho escondido em um cabaré do Cristal.
Sua proposta é samba das antigas, daquele que faz todo mundo dançar. Na tarde de domingo, um morador de rua abriu o salão. Convidou umas senhoras da plateia, que não titubearam e, lá pelas tantas, cinco pessoas já sambavam de braços abertos na frente da banda. Quem permaneceu no círculo, mesmo sem sair do lugar, também dançou e cantou clássicos como Tudo Está no Seu Lugar, de Benito di Paula, e marchinhas antigas, tipo Me Dá Um Dinheiro Aí.
Enquanto a maior parte dos músicos toca seu pandeiro ou surdo sentado em cadeira de praia, quem está de pé – e sambando – é o mais ancião da turma:
– É o ritmo contagia, e o ritmo não tem idade – declara Adilson da Silva, 78 anos.
O show conquista a terceira idade, mas também atrai jovens. Como a estudante Damily Schech, 15 anos, que também parou o passeio para curtir.
– Se eu não conheço, enrolo. Finjo que sei – ri.
Geraldo conta que, em um dia ruim, consegue tirar pelo menos R$ 250, entre contribuições espontâneas e CDs vendidos. Mas tem no seu grupo alguns integrantes que foram se juntando e tocam de graça, por gosto, como o advogado Césio Sandoval Peixoto, 59 anos.
– Isso aqui é uma alegria para quem toca, pode ter certeza que desestressa. E para quem escuta, faz um bem extraordinário – diz.