Num dos cantos do salão rodeado de espelhos, Brian Soares dos Santos, 12 anos, silenciou e parou de piscar por longos segundos, enquanto imitava os movimentos dos colegas que se apresentavam naquele momento diante do professor. A ação lembrava a mesma que há dois anos o apresentou ao balé, quando junto com uma prima visitou um estúdio de dança no bairro Rio Branco, em Canoas. Desta vez, porém, a sala de aula era outra: a da turma da segunda série da escola do Teatro Bolshoi no Brasil, em Joinville (SC).
Desde 15 de fevereiro deste ano, o menino selecionado em julho de 2017 com outros sete entre 430 inscritos, integra o seleto grupo de aspirantes a bailarinos daquela que é considerada a principal escola de balé do Brasil, vinculada a uma das maiores companhias de dança do mundo. Apesar do pouco tempo de dança, Brian entrou na turma dos que já possuem alguns conhecimentos da arte. Na escola do Bolshoi, formar um bailarino clássico leva o tempo de formação de um médico. O franzino guri de 1,37m e 30 quilos passará os próximos oito anos com dedicação total à busca de leveza e precisão nos movimentos.
- É tudo mais difícil, mas estou gostando. Sonhei muito com tudo isso. Meu sonho está se tornando realidade - conta, entusiasmado.
No primeiro dia de aula, Brian confessa ter engolido o choro ao entrar no teatro onde ocorrem as apresentações da companhia na cidade. Junto com os novos estudantes, cruzou entre palmas um corredor formado pelos veteranos.
- Foi emocionante. Me deu muita vergonha e, ao mesmo tempo, um alívio. Finalmente, havia chegado o dia - relembra.
Vida nova
Depois de receber os uniformes - malha, regata, camiseta, abrigo e sapatilhas -, Brian iniciou a nova vida a 615km de Canoas, ao lado da família. Os pais, Fernanda dos Santos, 30 anos, e Gilson Garcia dos Santos, 35 anos, e o irmão MIkael, cinco anos, também estão em Joinville. A família mora numa casa alugada a cerca de 4km do Bolshoi. Para realizarem a mudança desde o Rio Grande do Sul, os Santos fizeram uma campanha virtual pedindo ajuda financeira. A mobilização de amigos e voluntários anônimos ultrapassou as expectativas da família, que conseguiu também transporte gratuito até Santa Catarina.
- A adaptação está sendo boa. Pensei que seria mais complicado, mas estamos indo devagar e conhecendo a nossa nova cidade. O Brian já fez amigos e está contente, apesar da rotina pesada que ele tem - diz Fernanda, que está trabalhando como merendeira numa escola de educação infantil.
Rotina árdua
Diariamente, a família desperta com Brian, por volta das 5h. Uma hora depois, uma van busca o menino em casa para levá-lo ao Bolshoi. As aulas na escola russa seguem até as 12h, quando ele volta para casa, troca de roupa e vai para a escola municipal Padre Valente Simioni, onde cursa o sexto ano. A volta só ocorre as 18h, quando ele faz os temas, janta em família e dorme antes das 22h. Nos finais de semana, ensaia em casa e encontra tempo para brincar com os vizinhos. Em 15 dias no Bolshoi, o menino ganhou 1kg, alcançando os 30kg desejáveis pela escola.
No segundo dia das aulas de balé, Brian deu um susto nos pais. Exausto da quantidade de exercícios novos exigidos com perfeição pelos professores, o guri desceu da van chorando. Aos prantos, disse ao pai que não suportaria tamanha pressão. Pediu para voltar a Canoas. Consciente de que era apenas uma crise nervosa de iniciante, Gilson tratou de acalmar o filho.
- Ele só repetia que doía tudo, não aguentaria. Mas no outro dia já voltou a sorrir. Não vou pressioná-lo a fazer o que não quer, mas foi só uma fase de adaptação inicial - comenta o pai, que segue procurando emprego na indústria ou na construção civil.
Gilson teve um papel fundamental na história de Brian com a dança. Ao ser descoberto por acaso pela professora de balé Gabriele Schutz, o menino relutou em aceitar o convite para ser aluno bolsista no estúdio mantido por ela - a responsável por inscrevê-lo na seletiva do Bolshoi - porque precisaria convencer o pai sobre a própria vocação. A mãe relutou em aceitar a oferta de Gabriele devido à falta de condições financeiras da família e por saber que seria difícil convencer o marido, mas liberou o filho pela insistência da professora, que doou a ele as primeiras sapatilhas e a malha necessárias para as aulas. Gilson não se importou quando o menino desistiu do judô, mas passou a desconfiar da nova atividade do filho quando o viu assistindo vídeos de balé e se alongando pelos cômodos da casa da família. Por meses, Fernanda negou ao marido quando ele questionava as aulas de Brian. Ele só descobriu ao ver no jornal local uma foto do menino, o único entre as bailarinas, numa apresentação da escola.
As dúvidas sobre a carreira do filho só desapareceram quando Gilson viu a plateia aplaudindo de pé Brian ao fim da apresentação solo onde ele interpretava o personagem Pequeno Príncipe, inspirado na obra de mesmo nome, do autor Antoine de Saint-Exupéry. Desde então, o pai tem sido o maior incentivador da carreira do filho e é quem participa das reuniões no Bolshoi.
- A gente precisa cuidar muito dele. Tenho medo até de deixá-lo andar de bicicleta, pois pode se machucar. Quando a mochila da escola está muito pesada com os livros, ele vai sem ela e eu a levo de bicicleta. Não quero que ele arrebente a coluna - explica Gilson.
Na família, Fernanda é a mais consciente de que Canoas ficou para trás. Na segunda semana em Joinville, Gilson fez menção de voltar ao Rio Grande do Sul, pois sentia saudade dos familiares e estava preocupado com a falta de emprego. Foi Fernanda quem segurou a ansiedade do marido. Apesar de ainda estar alugando um imóvel de alvenaria de cinco peças por R$ 800 mensais, pago com o dinheiro doado por voluntários, o casal pretende vender a casa em Canoas e comprar uma em Joinville. Para isso, Gilson precisa voltar à ativa.
- Estamos todos em adaptação. No início, bateu um desespero porque tudo é muito diferente de onde morávamos. Mas, aos poucos, tudo está se encaminhando. Enquanto Brian estiver bem, nós estaremos - resume Fernanda.
Dores e susto
E o garoto afirma estar feliz, apesar de ainda arregalar os olhos quando cruza a roleta que dá acesso à escola russa. Pelos corredores, ele já distribui sorrisos e acenos aos novos colegas. Alguns sabem da luta travada pelo menino para estudar balé em Joinville. Nesta semana, a reportagem do Diário Gaúcho acompanhou parte das aulas do pequeno bailarino.
De chinelos e meia, Brian chegou antes das 8h para a disciplina de Dança Popular Histórica (DCP), ministrada pelo professor de dança clássica Maikon Golini, ex-aluno da primeira turma do Teatro Bolshoi no Brasil. Ao som do piano tocado pelo uruguaio Juan Godoi, o bailarino e outros 25 meninos e meninas tiveram 1h30min de aula. A todo momento, o professor se preocupava em lapidar os movimentos de Brian, que prestava atenção e corrigia imediatamente a postura.
- Ele está ainda um pouquinho assustado porque é muita informação nova para uma criança. Mas já dá para perceber que ele tem muita sede, muita vontade de aprender, ele é muito esforçado. Tem algumas coisas que ele está penando para pegar, mas ele corre atrás - comenta o professor Maikon.
Depois de um intervalo de 15 minutos, os meninos do grupo partiram para a aula de balé clássico com o ex-solista do Balé Bolshoi de Moscou Dmitri Afanasiev. Concentrados e em silêncio, os estudantes faziam a sequência de passos na barra, enquanto Dmitri os observava ao longe. Quando percebia erros, ia até o aluno e o corrigia. Até que chegou a vez de Brian ter a atenção chamada. No piano tocava Pela Luz dos Olhos Teus.
- Brian, acorda! - alertou o professor para o menino, que começava a dormir enquanto segurava na barra e trocava a posição dos pés.
Alerta, mesmo aparentando cansaço, o menino se reposicionou. Pouco depois, Dmitri voltou a ele. Desta vez, para corrigir a inclinação da perna esquerda de Brian.
- Ele não se adaptou ainda, mas são só duas semanas na escola. Mas o mais importante é que ele gosta de dançar. Então, acredito que vai dar certo. O Brian só precisa entender que vai trabalhar muito, a partir de agora. Trabalhar, trabalhar e trabalhar e ter paciência - reforçou Dmitri.
Logo depois, alongado, o guri fechou os olhos com força e movimentou os lábios como se dissesse "ai". Faltavam 30 minutos para a aula ser encerrada, mas ele continuou. Quando teve um minuto de espera, enquanto parte do grupo ensaiava, Brian chamou dois colegas e mostrou a dificuldade para dobrar a perna. Um dos meninos ajudou a alongá-la e Brian colocou as mãos sobre o rosto para esconder a reação.
- Na hora que alonguei a perna, o joelho fez um barulho. Estou morrendo de dores - contou à repórter, já se preparando para a disciplina de ginástica.
O desconforto no joelho levou Brian à sala da saúde, e foi preciso faltar à última aula da manhã. Durante 30 minutos, ele ficou com uma bolsa de gelo sobre o local dolorido:
- Sei que vou ter que passar por dores, mas vou continuar. Eu vou brilhar, vou crescer por causa do Bolshoi.
Ao fim da sessão de recuperação, o menino voltou a sorrir, calçou o chinelo sobre as meias, ergueu o pescoço, alongou a coluna e saiu dedidido a voltar no dia seguinte.
Escola Teatro Bolshoi é referência mundial
Passos leves e cortesia nos corredores, com disciplina russa nas salas de aula são fundamentais para quem pretende seguir no Bolshoi. A escola tem 220 alunos, todos bolsistas. Para se manter no Brasil, a instituição depende dos patrocinadores.
Mais de 300 alunos se formaram na instituição brasileira em 18 anos. Destes, 72% atuam na área da dança, como bailarinos ou professores. A meta da escola Bolshoi do Brasil é formar cidadãos, preocupando-se em oferecer as disciplinas práticas e teóricas relacionadas à arte e, também, controlar o desenvolvimento na escola regular.
- A gente nem sempre lembra como foi o caminho desta grande instituição que já tem mais de 240 anos, começou como um projeto social na Rússia. E esta experiência se repete em Joinville. Atráves de seleção criteriosa, estudam crianças de vários Estados e de dois países vizinhos. Elas conseguem, com seu próprio esforço uma vida melhor - explica o diretor geral da Escola do Teatro Bolshoi no Brasil, Pavel Kazarian.
Estados Unidos, Alemanha, Áustria e Rússia são os principais mercados que absorvem os ex-alunos. O Bolshoi de Moscou, por exemplo, que não costuma empregar bailarinos estrangeiros, tem quatro brasileiros contratados que estudaram na escola de Joinville.