Improvisadas com lonas, tapumes, pedaços de móveis ou qualquer tipo de entulho, surgem cada vez mais casas de moradores de rua às margens do Arroio Dilúvio. GaúchaZH contou 23 ao longo dos cerca de 10 quilômetros da Avenida Ipiranga na terça-feira (30), incluindo duas barracas de camping. Em 2016, a reportagem havia observado 16 pontos.
Quanto mais próximo ao Centro, mais barracos são percebidos. Parte é erguida junto aos taludes do arroio, e alguns utilizam as pontes como teto — como sob a Avenida Borges de Medeiros. No cruzamento com a João Pessoa, havia até uma poltrona e um varal, onde secavam camisetas, calças e bermudas masculinas.
Outro ponto notável é em frente ao Planetário Professor José Baptista Pereira, onde há três estruturas em sequência, a cerca de dois metros da água. Uma delas tinha pia e fogão improvisados, e uma bandeira de plástico do Brasil enfeitava o ambiente.
As estruturas chamaram a atenção de Fernanda Bica, 35 anos, ao atravessar a Ipiranga para pegar o ônibus nesta terça. Ela admite que sente "um pouco de insegurança" ao passar perto desses pontos, enquanto o técnico em enfermagem Celso Rodrigues da Silva, 48, teme que, sob efeito de drogas, os moradores de rua caiam na água e se afoguem, ou então gerem algum acidente de trânsito na avenida.
De acordo com o tenente-coronel Eduardo Amorim, comandante do 9º Batalhão de Polícia Militar (BPM), responsável pelo entorno da Vila Planetário, as pessoas presas na região costumam ser delinquentes de outros bairros. Ele afirma que não há indícios de que as pessoas que moram no entorno do Dilúvio pratiquem roubos ou tráfico de drogas. O delegado Ajaribe Pinto, da 10ª Delegacia de Polícia (DP), diz que não há estatística que faça vínculo entre os moradores de rua da Avenida Ipiranga e roubos e casos de tráfico no entorno.
Se para alguns a presença dos barracos é motivo de temor, o bibliotecário Celvio Cassal, 37 anos, ao passar ao lado de uma das casas, relata indignação:
— Que sociedade é essa que deixa pessoas viverem nessa situação?
Em oito anos, população de rua aumentou 75%
Existe uma alta rotatividade de pessoas que acessam o entorno do arroio em razão do uso de drogas, segundo a Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), sendo que algumas não estão em situação de rua — têm moradia fixa em outras áreas. Relatos da equipe do Centro de Referência Especializado de Assistência Social Partenon dão conta de que há aproximadamente sete pontos que já foram identificadas como "mocós" — usados para encontro de usuários de substâncias psicoativas.
A Fasc observa também que há uma parcela importante de pessoas com problemas de saúde mental, já identificadas por equipes da fundação e da Secretaria Municipal de Saúde. A fundação não remove moradores da rua: faz a abordagem e oferece serviços, sugerindo a utilização de albergues, por exemplo. Mas muitas pessoas se recusam ao acompanhamento, segundo a instituição.
Não é só impressão dos porto-alegrenses que há mais pessoas dormindo nas ruas. O número de pessoas adultas que vivem nos logradouros de Porto Alegre cresceu 75% em oito anos, segundo levantamento realizado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e divulgada pela Fasc no final de 2016. Um dos coordenadores da pesquisa, o sociólogo Ivaldo Gehlen destaca que os moradores de rua escolhem lugares onde se sentem seguros, e que as margens do Dilúvio sempre tiveram concentração considerável, muito em razão das pontes que protegem da chuva e do sol. Não foi feita estatística por via, mas alguns bairros atravessados pela Ipiranga, como o Santana, tiveram aumento da população de rua.
O que é uma tendência recente, de acordo com o sociólogo, é a construção dessas pequenas casas improvisados, em diversas regiões da cidade. Ele relata que isso começou por volta de 2013, e ressalta que indicam a busca por um espaço privado:
— Eles podem estar sinalizando como querem ser tratados. Estão manifestando que querem alguma moradia.
Na ponte da Getúlio, casa com pátio e flores
José Ivan de Oliveira, 29 anos, usou materiais que encontrou no lixo para fazer sua casa ao lado da ponte da Avenida Getúlio Vargas, mas isso não quer dizer que deixou de caprichar. A lona de uma piscina azul de plástico foi usada para reforçar a cobertura da sua casa, enquanto os "pés" serviram como cerquinha para delimitar o pátio. Junto com seu amigo e vizinho de barraco, capinou um caminho até a rua, delimitado por plantinhas protegidas por pneus. Também há flores plantadas em vasos e um arranjo suspenso, pendurado na árvore com uma faixa de artes marciais que ele achou num contêiner de lixo. As flores também estão em uma pintura, que finaliza a decoração escorada na casa. Algumas semanas atrás, tinha até pinheirinho de Natal enfeitado.
Orgulhoso, ele conta que muitas pessoas tiram fotos da casa, e já lhe garantiram ser a mais bonita em toda a extensão do Dilúvio. O espaço é limpo, muito porque José Ivan chama a atenção de quem joga lixo no chão por ali.
Morar na rua é uma coisa, ser porco e relaxado é outra
Morador de rua em razão das drogas — do crack, principalmente —, José Ivan relata que começou a construir seu barraco há um mês. Ele vive com o dinheiro que ganha com doações nas sinaleiras das imediações, e já fica "cuidando do barraco" enquanto isso. Com uma prancha de surfe tatuada no braço, conta que já foi surfista e pegou onda em Torres, Florianópolis e Tramandaí, mas o vício em drogas lhe tirou esse prazer.
— Drogas é pior que doença — lamenta, sem perder a esperança: — Nunca é tarde, um dia posso sair da rua.