
Casas improvisadas estão se proliferando sem controle às margens do Arroio Dilúvio, em plena Avenida Ipiranga, uma das vias mais movimentadas de Porto Alegre. Antes concentrados sob as pontes, os moradores de rua agora erguem seus lares também ao longo do riacho, aproveitando os taludes como piso ou parede.
Nesta semana, ZH percorreu os cerca de 12 quilômetros do córrego e localizou ao menos 15 agrupamentos, parte deles de casebres levantados nos taludes. De acordo com especialistas, há um fenômeno de migração dos sem-teto do centro da cidade para as imediações do Menino Deus, por onde passa o Dilúvio. Entre as vantagens está a proximidade das sinaleiras da Avenida Ipiranga, onde vários pedem doações aos motoristas.
Ao se instalar na beira do riacho, os moradores de rua também evitam confrontos com cidadãos melhor estabelecidos - em um caso recente, moradores de um prédio da Cidade Baixa provocaram polêmica ao instalar uma grade na calçada para afastar pessoas que dormiam no local.
Nos taludes, os sem-teto encontraram um espaço desocupado, em que não são hostilizados e ainda contam com a tolerância das autoridades. Para o sociólogo Ivaldo Gehlen, estudioso do assunto, a migração para a zona do arroio pode significar um desejo de parte da população de fixar-se em um lugar.
- Não significa necessariamente sair da rua, mas mudar a maneira de viver. No Centro, foram criadas dificuldades, porque ali era um lugar visto como inapropriado para a presença deles - avalia o sociólogo.
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E se Porto Alegre se adaptasse aos moradores de rua?
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Para quem passa pela Ipiranga, tornou-se usual deparar com a precária arquitetura das residências que se multiplicam ao longo do arroio. Os habitantes das margens levantam seus lares com o que conseguem encontrar: tapumes de madeira, telhas, plástico, papelão e materiais colocados no lixo para reciclagem.
Algumas construções são elaboradas. Cristiano Barbosa, 38 anos, construiu para si um casebre baixo e comprido nas imediações do planetário. A parede externa é composta por objetos recolhidos na reciclagem, como um forno de micro-ondas e um fogão, onde ele cozinha arroz e massa. O telhado é um fino tapume de madeira, preso com arames. Na rua há oito meses por causa de conflitos familiares, Barbosa diz que depois de se instalar no Dilúvio passou por uma fase de reflexão e largou o crack.
- Ganho R$ 10, no máximo R$ 15, reciclando. Se gastasse o dinheiro comprando crack, não tinha dinheiro pra comer - diz.
Foto: Lauro Alves, Agência RBS
Segundo o presidente da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), Marcelo Soares, os agentes públicos enfrentam dificuldade de chegar aos habitantes do riacho:
- O uso dos taludes é antigo, mas aquelas moradias têm sido frequentes desde o final de 2012, início de 2013. Hoje, nossas equipes de abordagem têm dificuldade de ir ali, há uma reação até de agressividade por parte dos moradores. Estamos fazendo um estudo com o Ministério Público (MP) para montar um protocolo de intervenção nestas áreas.
As autoridades não sabem precisar o número de pessoas que vivem às margens da arroio. O levantamento mais atualizado da Fasc data de 2011 e aponta um total de 1,3 mil moradores de rua em Porto Alegre. O projeto Universidade na Rua, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), aponta para um número bem maior, oscilando entre 3 mil e 5 mil.
Prefeitura diz que não pode forçar remoção
A prefeitura da Capital afirma que não tem como impedir a presença de casas nas margens do Arroio Dilúvio. Segundo o vice-prefeito, Sebastião Melo, a administração municipal não tem poder para retirar as moradias e seus ocupantes.
- Moradores de rua são uma triste realidade do mundo inteiro. O que se pode fazer são políticas públicas de cadastramento deles. Você não tira pessoas da rua na marra, você tem de convencê-las a sair. É uma situação muito delicada, não tem como enfrentar com espírito simplista, e higienização nós não faremos - afirma.
Foto: Lauro Alves, Agência RBS
Um risco decorrente da permanência dos sem-teto é que eles terminem se tornando vítimas de acidentes de trânsito na Avenida Ipiranga. Com frequência, veículos saem da pista, passam pelo talude e caem no arroio. A circulação da população de rua pelo local também gera temor:
- Ficamos preocupados com moradores de rua alterados pelo álcool, atravessando a via e comprometendo a própria segurança e dos condutores - diz o diretor-presidente da Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC), Vanderlei Cappellari.
O consumo de drogas é outro agravante. Segundo o major Francisco Vieira, comandante no 9º Batalhão da Brigada Militar, responsável pelo patrulhamento nas redondezas da Vila Planetário, os taludes estão entre os territórios preferidos por usuários de crack.
- Não temos a notícia de que estão traficando, mas consomem drogas no local. Na Vila Planetário, eles conseguem a droga. Ali é um ponto conhecido, pega as pessoas que vêm da Redenção, da extensão da Ramiro Barcelos e da Ipiranga. Mas não tenho notícia de roubo e furto por ali - afirma.
Para o sociólogo Antônio Marcelo Pacheco, que viveu entre os sem-teto para fazer um doutorado sobre o tema, a corrente migração para os taludes expõe uma necessidade de privacidade.
- Eles sempre foram ali para fazer necessidades pessoais, mas hoje é um espaço de privacidade que encontraram para viver. Tem gente que parou ali porque quis, outros porque foram molestados ou espancados pelos pais, outro é autista e é na rua que ele encontra solidariedade. Não buscam assistencialismo. Buscam dignidade, direito de ser respeitado como cidadão - diz Pacheco.

