Duas pequenas folhas de papel coladas nas portas de vidro da entrada do Hospital Beneficência Portuguesa, na Avenida Independência, exibem avisos importantes: "Banheiro interditado" e "Pronto-atendimento fechado". As frases dão indícios da maior crise já enfrentada pela instituição em seus 163 anos de existência: com pelo menos R$ 65 milhões em dívidas, segundo levantamento inicial da administração, e apenas três leitos ocupados no início de janeiro, o hospital que já foi um dos mais importantes de Porto Alegre corre risco de fechar as 183 vagas e desfazer-se dos cerca de R$ 10 milhões em equipamentos adquiridos no ano passado.
O cenário do hospital privado, mantido por uma associação de descendentes de portugueses, é desolador. Oficialmente, segundo o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (Cnes), a instituição presta serviços de atenção básica e de média e alta complexidade para pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS), particulares ou de convênio. Mas, na prática, o Beneficência está quase vazio: não realiza consultas ou exames nem recebe novas internações pelo SUS. No último semestre, havia relatos de falta de remédios, alimentos e até de papel higiênico. O número de funcionários caiu de 600 para cerca de 150 ao longo de 2017 e os salários estão atrasados há seis meses, de acordo com o Sindicato dos Profissionais de Enfermagem, Técnicos, Duchistas, Massagistas e Empregados em Hospitais e Casas de Saúde do Estado (Sindisaúde-RS).
— Estamos trabalhando para sanar alguns problemas e, devagarinho, começarmos a voltar — diz Augusto Veit, presidente interino do Beneficência Portuguesa, que assumiu no mês passado a gestão após a renúncia do antecessor, José Antônio Pereira de Souza.
A possibilidade de naufrágio surgiu em 2011. E foi um iceberg atrás do outro: afastamento de administradores por suspeita de irregularidades, rompimento do convênio com a prestadora de exames de imagem por supostamente superfaturar contratos (com isso, o hospital deixou de realizar cirurgias neurológicas e ortopédicas, as mais bem pagas pelo SUS) e negativa de empréstimos milionários com Caixa Econômica Federal (R$ 14 milhões) e Banrisul (R$ 2,5 milhões) por falta de garantias financeiras.
Esta última foi uma das razões para a prefeitura de Porto Alegre rescindir, em 29 de novembro, o contrato que abastecia os cofres do Beneficência com R$ 1,4 milhão ao mês. O hospital havia recebido R$ 7,7 milhões do município sem dar a contrapartida em serviços prestados à população. O acordo previa que, das 183 vagas, 116 seriam mensalmente exclusivas a pacientes do SUS. Segundo a pasta, só dois atendimentos gratuitos foram realizados em outubro e nenhum em novembro (confira o número de internações ao lado).
— O rompimento do contrato não foi uma decisão intempestiva. Desde 2015, o Beneficência começou a deixar de atender à população. Eles suspenderam gradativamente uma série de serviços — diz João Marcelo Lopes Fonseca, coordenador da Assistência Hospitalar da Secretaria Municipal de Saúde (SMS).
Da grave crise, emergiram alternativas que tentam recuperar a instituição. O Ministério da Saúde já destacou uma força-tarefa, constituída por seis hospitais de referência no país, para realizar uma consultoria para reformular as atividades do Beneficência. O Hospital Moinhos de Vento é um dos integrantes do grupo e, pela proximidade, já que é o único gaúcho, é o mais provável a ser encarregado da análise, prevista para começar ainda em janeiro. Além disso, Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (Simers), comunidade médica e políticos se mobilizam para salvar o hospital. Veja, a seguir, as saídas discutidas.
Curto prazo
Prefeitura assume
Uma das sugestões do Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (Simers), entidade que lidera a mobilização, é a prefeitura de Porto Alegre assumir temporariamente a gestão do Beneficência Portuguesa até recuperá-lo. Para isso, seria necessário um decreto de estado de calamidade pública da instituição. Tal medida já ocorreu em 2009, por exemplo, quando o Conselho Regional de Medicina (Cremers) interditou a Santa Casa de Santana do Livramento, que passou a ser gerida pelo município.
— Sem assumir a dívida, a prefeitura dirigiria o hospital até sanar a situação financeira para devolvê-lo a quem antes o administrava. Isso é legal e pode ser feito. É preciso ter vontade e coragem — diz o presidente do Simers, Paulo de Argollo Mendes.
A prefeitura vê a alternativa como inviável por falta de recursos.
— Isso não é uma opção a ser considerada. O hospital é privado, ele tinha receitas tanto do SUS quanto de convênios. A gestão de capital dele é privada. A Secretaria não é empecilho para o funcionamento do hospital, mas também não temos como assumir isso — afirma João Marcelo Lopes Fonseca, coordenador da Assistência Hospitalar da SMS.
Médio prazo
Retomar contrato com a prefeitura
A grande esperança do Beneficência para novo fôlego no caixa é a Secretaria Municipal de Saúde retomar o contrato no qual se compromete a enviar pacientes do SUS à instituição. A pasta exige, porém, saúde financeira — incluindo o pagamento de todas as dívidas. O coordenador da Assistência Hospitalar da SMS, João Marcelo Lopes da Fonseca, ressalta que o município precisa obedecer às leis gerais envolvendo contratos entre Estado e entes privados — dentre as normas, é proibido firmar convênios com empresas negativadas:
— Temos de dar satisfação dos gastos ao Tribunal de Contas, temos normas necessárias a cumprir para contratualizar.
Convênio com outro hospital
Uma opção ventilada é o hospital ceder leitos ou transferir a gestão para outra instituição, com caixa saudável.
— A ideia é conseguir alguém para ajudar. O povo lá fora precisa de atendimento. Por que não vir outro hospital? A solução ideal seria usar nossos equipamentos e corpo técnico sob a direção de alguém e assim equacionar a situação — diz Augusto Veit, diretor-presidente interino do Beneficência, citando Moinhos de Vento, Mãe de Deus, Vila Nova e Divina Providência como interessados no modelo.
No entanto, qualquer avanço nesse sentido depende do relatório produzido por uma auditoria financeira promovida pelo Banrisul que apontará o real rombo nas finanças — hoje, a gestão do Beneficência projeta R$ 65 milhões. Além disso, os hospitais interessados aguardam a garantia de que a SMS voltará a firmar contrato com a instituição.
O coordenador da Assistência Hospitalar da secretaria, João Marcelo Lopes da Fonseca, considera a opção viável "sem sombra de dúvida":
— Consideramos recontratualizar, sim. Não importa qual hospital assumir, se público ou privado. Mas precisa ser algum que estabilize as operações. Isso seria possível tanto se assumissem parte dos leitos do Beneficência ou a instituição inteira.
A gerente administrativa do Hospital Vila Nova, Thais Malcorra, diz que a instituição cogitou assumir a gestão plena do Beneficência, mas que o departamento jurídico deu parecer contrário. O Moinhos de Vento, em nota, afirma que já definiu para os próximos cinco anos as ações em pesquisa, educação e modernização tecnológica e que "não estão previstas iniciativas fora dessa abrangência". O diretor geral de Operações da Rede de Saúde Divina Providência, José Clóvis Soares, diz que a mantenedora do Divina Providência não manteve "contato com autoridades da saúde, nem com outras pessoas relacionadas", mas que se coloca "à disposição para auxiliar no que for possível". A Associação Educadora São Carlos (Aesc), mantenedora do Mãe de Deus, afirmou que não há conversas sobre o assunto no momento.
Hospital-escola
Transformar o Beneficência Portuguesa em um hospital-escola da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), assim como o Hospital de Clínicas é ligado à Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é uma das alternativas vistas com bons olhos. A saúde financeira estaria garantida graças a verba do Ministério da Educação (MEC). A articulação foi feita em reunião no Ministério da Saúde pela reitora da UFCSPA, Lucia Pellanda. Ela diz que um grande obstáculo é o ajuste fiscal imposto pelo governo federal.
Para atuar sem depender da verba de Brasília, outra proposta é a Santa Casa assumir a gestão do Beneficência e transformá-lo em hospital-escola — assim, ele atenderia a convênios particulares para assegurar o bom fluxo no caixa, mas também receberia pacientes do SUS enquanto seria um campo de atuação de ensino, pesquisa e extensão da UFCSPA. O mesmo já ocorre no Hospital de Santo Antônio da Patrulha, cuja gestão foi assumida pela Santa Casa em abril do ano passado.
— A ideia do hospital-universitário depende inteiramente do MEC. Nesse momento, é mais provável que seja uma solução com vários atores da sociedade. Se houvesse uma saída perfeita, ele seria um hospital-escola onde teríamos um espaço para aumentarmos nosso campo de atuação, ao lado da Santa Casa. Isso depende de o Beneficência resolver a dívida, nos convidar oficialmente e do resultado da auditoria financeira — diz Lucia.
Contatada por GaúchaZH, a assessoria da Santa Casa enviou uma nota na qual afirma que aguarda o resultado de "auditoria externa" e que o complexo hospitalar não assumirá a gestão do Beneficência sem a UFCSPA.
Convênios assumem parcela
De acordo com o presidente do Simers, Paulo de Argollo Mendes, há convênios particulares interessados em internar pacientes no Beneficência — entre eles, Unimed e IPE. O primeiro passo para isso ocorrer é reformar a cozinha, interditada no fim do ano passado por inadequações à legislação. O valor da obra, que inclui mudanças no piso do local, está sendo estudado, diz o diretor-presidente do hospital, Augusto Veit.
— Para aumentar o número de pacientes, temos que sanar os pequenos problemas, como a interdição da cozinha e a realização de exames de radioimagem. Esperamos resolver a cozinha ainda em janeiro — ressalta Veit.