Sem dinheiro para pagar salários e comprar medicamentos, insumos e comida, o Hospital Beneficência Portuguesa definha. A instituição localizada na área central de Porto Alegre enfrenta um dos momentos mais críticos de seus 163 anos: corre o risco de fechar as portas, o que significaria perda de 187 leitos e R$ 10 milhões em equipamentos novos.
A crise é resultado de uma soma de fatores, que vai do afastamento do corpo administrativo em 2011 por suspeita de irregularidades à descoberta de contratos superfaturados, passando por rompimento com a empresa que prestava serviços de radiologia e imagem, redução na quantidade de atendimentos de alta complexidade e negativa de empréstimo por parte de instituições financeiras.
O último episódio foi a rescisão do contrato da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) com o hospital em 29 de novembro. A prefeitura repassava cerca de R$ 1,4 milhão por mês para que o Beneficência Portuguesa destinasse 116 leitos para o Sistema Único de Saúde (SUS), incluindo serviços ambulatoriais e cirurgias de alta complexidade. O acordo foi firmado em março de 2012.
— Chegamos a um limite. O Beneficência tem quase R$ 7,5 milhões em dívida com a administração municipal por atendimentos não prestados — salienta o titular da pasta, Erno Harzheim.
De acordo com a Central de Regulação de Leitos do Estado, o número de internações caiu drasticamente nos últimos meses: foram 126 em junho, 45 em julho, 78 em agosto, 20 em setembro e apenas duas em outubro.
José Antônio Pereira de Souza, ex-diretor-presidente da instituição que renunciou ao cargo no mês passado, diz que quanto menos atendimentos eram feitos, menos recursos o hospital recebia.
— Virou uma bola de neve. Tentamos um empréstimo tampão com o Banrisul, mas nos foi negado. Recorremos à Caixa Econômica Federal, que levou seis meses para informar que não nos financiaria os recursos necessários — lamenta, ao citar que sem verbas para insumos básicos não havia condições de acolher mais pacientes.
Em meio a isso, o hospital passou por protestos de servidores devido aos salários atrasados e às más condições de trabalho. De acordo com o Sindicato dos Profissionais de Enfermagem, Técnicos, Duchistas, Massagistas e Empregados em Hospitais e Casas de Saúde do Estado (Sindisaúde-RS), parte dos funcionários estão sem receber há seis meses.
O Ministério Público (MP) acompanha a situação, e dois inquéritos tramitam na Promotoria dos Direitos Humanos desde 2014. Entidades como Cremers e Simers trabalham para encontrar uma solução com o apoio da Comissão de Saúde e Meio Ambiente, na Câmara Municipal, e a Frente Parlamentar em Defesa do Beneficência Portuguesa, na Assembleia Legislativa.
Nesta quinta-feira (14), um grupo de médicos leva a Brasília a proposta de transformar o Beneficência Portuguesa em hospital-escola. Quem está mediando o encontro, no Ministério da Saúde, é o deputado federal Jerônimo Goergen (PP-RS). A proposta partiu do corpo docente da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) e, nos bastidores, teve boa repercussão e promessas de apoio.
AFASTAMENTO E INTERVENÇÃO
Sócio antigo da instituição — além de filho e neto de membros da mantenedora —, José Antônio Pereira de Souza foi eleito presidente do Conselho Deliberativo da Associação Portuguesa de Beneficência de Porto Alegre em 2011.
— Poucos dias depois, recebi suspeitas de fraudes que teriam sido feitas pela equipe diretiva da casa de saúde. Como as denúncias que vieram foram muito fortes, decidimos suspender essa diretoria por 120 dias e contratar uma auditoria externa. Em 10 de outubro daquele ano, assumi a função como interventor — detalha.
Conforme Souza, a auditoria apontou compra de materiais e medicamentos superfaturados.
— Descobrimos também a existência de funcionários fantasmas, inclusive se localizou um HD externo onde rodava uma folha de pagamentos paralela. Além de contratos de obras inexistentes e notas fiscais de empresas fechadas há mais de 10 anos — relata, ao dizer que um dossiê foi confeccionado e enviado à polícia e ao Ministério Público. — Além disso, abrimos um processo administrativo para a expulsão dessas pessoas da mantenedora — observa.
O caso tramitou em primeira instância e na 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça, que manteve a condenação do ex-presidente por falsidade ideológica e peculato.
Segundo Souza, a situação da época levou ao rompimento da prestação de serviços ao Sistema Único de Saúde (SUS):
— Com tudo isso, tivemos que retomar a credibilidade do hospital junto à Secretaria Municipal da Saúde e conseguimos voltar com os serviços pelo SUS em 2012.
MAIOR DEMANDA E CONVÊNIOS
Com a retomada dos serviços, o Beneficência Portuguesa observou a necessidade de ampliar o hospital.
— Pedimos que fosse feito um aumento da contratualização, para prestarmos mais serviços e, por consequência, recebermos mais recursos — detalha, ao afirmar que foram assinados contratos com as secretarias municipal e estadual da Saúde.
— Mas daí aconteceu o problema de o Estado ter assinado um contrato que não tinha dinheiro para cumprir. Aumentamos nossa estrutura, mas não recebemos por isso. Sem esse recurso, voltamos nossas atenções para atendimento de convênios — relata.
Em 2014, a instituição assinou nova parceria com o Instituto de Previdência do Estado (IPE), na área da Saúde, inclusive com um novo pronto-atendimento voltado para os servidores do RS, com inauguração no dia 3 de junho daquele ano. De acordo com Souza, a receita com os serviços ao IPE-Saúde aumentou de R$ 300 mil para R$ 1,5 milhão por mês.
— Foi então que o hospital começou a encorpar — comenta.
PRÓ-SUS E EMENDAS PARLAMENTARES
Para renovar o contrato com a SMS, o Beneficência Portuguesa entrou no programa Pró-SUS, reestruturando o passivo de tributos do hospital e garantindo a negativa de débitos junto ao governo. Com isso, a instituição conseguiu uma emenda parlamentar individual, no valor de R$ 1 milhão, para reaparelhamento da Unidade de Terapia Intensiva (UTI).
Outra emenda, desta vez da bancada gaúcha por meio do então coordenador, deputado Giovani Cherini, empenhou R$ 9 milhões ao hospital. O hospital investiu o recurso na aquisição de aparelhos e mais de 200 camas hospitalares novas.
— Tem equipamentos ainda chegando. Estamos com um hospital quase fechado e totalmente equipado — lamenta o ex-diretor-presidente.
ROMPIMENTO COM A IRRADIAL
O Beneficência Portuguesa rompeu, de forma unilateral, o contrato com a empresa que prestava serviço de radiologia e imagem, por suspeita de superfaturamento na compra e venda de equipamentos. O hospital perdeu a capacidade de fazer atendimentos em neurocirurgia. O fato foi citado como ponto crucial para a crise da instituição pelo secretário municipal de Saúde e no inquérito do Ministério Público.
Segundo o ex-diretor-presidente, a rescisão com a empresa Irradial foi provocada pela descoberta de um contrato superfaturado de aquisição, por parte da casa de saúde, de equipamentos da terceirizada. O valor acordado superava os R$ 3,6 milhões e, conforme Souza, as máquinas valeriam pouco mais de R$ 500 mil.
Com o fim do contrato, a instituição deixou de realizar procedimentos em neurocirurgia pela falta de exames como tomografias, já que a nova empresa levou quase cinco meses para se instalar.
— Contratamos outra prestadora, mas como a Irradial entrou com uma liminar garantindo que não fosse retirada do prédio, a nova empresa não conseguiu se instalar rapidamente — afirma.
Em nota, a defesa da Irradial afirma que o contrato de compra e venda foi aprovado pela equipe técnica do hospital e “os preços praticados eram absolutamente compatíveis com o valor de mercado da época”. A Irradial ainda cita que “até notificada pela administração da Associação Portuguesa de Beneficência em novembro de 2016, prestou regularmente todos os serviços de radioimagem e medicina nuclear solicitados pelo hospital, mesmo sem receber a contrapartida de pagamento destes serviços desde abril de 2016”. A nota ainda traz a informação de que, posteriormente à ruptura unilateral do contrato, seguiu prestando os serviços que a nova contratada não tinha condições de atender até meados de 2017.
O texto destaca que a administração do Beneficência, também em novembro de 2016, notificou a Irradial para que desocupasse a área locada, onde funciona o serviço de medicina nuclear: “Mas a desmobilização de um sistema de medicina nuclear importa em autorização, inspeção e fiscalização da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN). A matéria encontra-se sub judice, mantida a locação por decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul”.
SEM CRÉDITO NOS BANCOS
Com a perda de receitas da alta complexidade, já que não podia mais atender casos de neurocirurgia, a casa de saúde começou a enfrentar problemas de fluxo de caixa, com o atraso no pagamento de funcionários e de fornecedores. Para tentar injetar dinheiro e estabilizar as finanças da instituição, a direção do hospital buscou o financiamento de R$ 2,5 milhões junto ao Banrisul. O crédito, porém, foi negado. Questionado por GaúchaZH, o banco informou que não se pronuncia sobre o relacionamento comercial com os seus clientes.
Souza afirma que tratava de uma linha de financiamento, voltada a hospitais, junto à Caixa Econômica Federal, no valor de R$ 14 milhões – montante referente à carta de margem concedida pelo Ministério da Saúde. Depois de seis meses, o crédito foi negado pelo banco.
Em nota, a Caixa informa que a concessão de crédito à pessoa jurídica “obedece rígidos padrões de governança corporativa, aderentes à normatização do Banco Central e legislação específica”. O texto cita que a Caixa possui diversas ações junto ao segmento da saúde e, dentre as entidades já contempladas, consta o Hospital Beneficência Portuguesa. “A operação em questão chegou a ser avaliada, mas não foi aprovada”, afirma a nota, ressaltando ainda que “todos os esforços foram enviados para que a negociação fosse concretizada”.
RESCISÃO COM O SUS
Sem o empréstimo para injetar dinheiro em caixa e com quase R$ 7,5 milhões em serviços pagos, mas não prestados ao SUS, o hospital perdeu o contrato com a prefeitura de Porto Alegre. A Secretaria Municipal da Saúde rescindiu a contratualização, de maneira unilateral, em 29 de novembro. A decisão foi publicada no Diário Oficial do Estado. A SMS diz que a rescisão foi motivada pela inexecução plena dos serviços e descumprimento das condições de habilitação do contratado, "bem como dos prejuízos oriundos da descontinuidade da prestação dos serviços de saúde e riscos financeiros ao erário”.
De acordo com Erno Harzheim, o contrato foi rescindido por "questões internas" de gestão do hospital e não por problemas do corpo clínico.
— Uma das áreas de especialização do Beneficência é a neurocirurgia. Mas houve o rompimento do hospital com a clínica de tomografia. Com isso, eles pararam de fazer cirurgias dessa especialidade, que era um dos procedimentos com maior retorno financeiro para a casa de saúde — cita.
Conforme Harzheim, a SMS apostou por dois anos na recuperação da casa de saúde, mantendo o repasse de R$ 1,4 milhão por mês.
NOVO COMANDO
No dia 28 de novembro, o comando do Hospital Beneficência Portuguesa passou para o presidente do Conselho da mantenedora, Augusto Veit Júnior. Em nota, o dirigente afirmou que está se inteirando sobre a real situação da casa de saúde, mas que confia na viabilidade econômica da instituição. O executivo relata que o momento é de transição e que “acredita em soluções que possam levar novamente ao crescimento do hospital”.
FUTURO DA INSTITUIÇÃO
Conforme a Secretaria de Saúde de Porto Alegre, uma nova contratualização junto ao Beneficência passa por três exigências: o pagamento dos valores devidos, em recursos financeiro ou produção; retomada das atividades assistenciais; e troca do grupo gestor.
A direção do Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (Simers) afirma que está acompanhando reuniões com instituições – setor público e até bancos – para poder dar condição de sustentabilidade ao hospital.
NÚMEROS DE ATENDIMENTO SUS*
Média complexidade (contratados 5.373 atendimentos):
- 1º quadrimestre de 2015 – 5.813 atendimentos
- 1º quadrimestre de 2017 – 1.863 atendimentos
- Alta complexidade (contratados 188 atendimentos):
- 1º quadrimestre de 2015 – 130 atendimentos
- 1º quadrimestre de 2017 – 29 atendimentos
*Dados da Secretaria Municipal da Saúde