Como se não bastasse a falta recursos para famílias pobres que dependem da assistência social de Porto Alegre e a necessidade de servidores driblarem problemas estruturais e déficit de funcionários para prestar serviço à população, uma sindicância da Procuradoria-Geral do Município (PGM) identificou irregularidades em 34 contratos de imóveis alugados pela Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc). A apuração concluiu que há indícios de desperdício de dinheiro público.
Concluída em abril, a investigação mostra que os aluguéis dos imóveis foram firmados sem licitação, sem pesquisa de mercado e com a documentação incompleta. Neles, funcionam abrigos, áreas de patrimônio, albergues e centros de atendimento à população de rua e Centros de Referência em Assistência Social (Cras). De 2000 até agora, a prefeitura já desembolsou aproximadamente R$ 10 milhões em aluguéis com alguma irregularidade.
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Cinco dessas construções tiveram a mensalidade paga mesmo desocupadas. Na última quinta-feira, três delas, depredadas, seguiam sem uso. Uma está sendo parcialmente utilizada como abrigo de crianças e outra foi devolvido ao proprietário com a estrutura danificada.
Agora abandonado, um imóvel da Rua Barro Vermelho, na Restinga, era usado como abrigo residencial. Depois de desocupá-lo, a prefeitura pagou aluguel durante um ano. Finalizou o repasse apenas no final do ano passado, mas sem encerrar o contrato. O proprietário, Luiz Carlos Fraga, diz ter ainda R$ 70 mil a receber.
– Entrei com processo de retomada de posse. Estou pedindo a reforma do lugar, porque deixaram tudo quebrado, e o pagamento do aluguel atrasado (cerca de R$ 70 mil) – relatou Fraga.
Segundo a sindicância, em 13 dos 34 contratos não havia avaliação ou estudo que justificasse a escolha daqueles imóveis, em 10 os documentos cartorários não estavam assinados ou autenticados e em 16 documentações faltaram pareceres jurídicos que validassem os contratos. Pelo menos 12 imóveis foram alugados sem vistoria. Em alguns casos, o negócio foi fechado mesmo quando as vistorias indicaram problemas estruturais.
Além de pular a etapa da licitação, a Fasc teria descumprido uma ordem de serviço de 2011, que determina o encaminhamento de todos os processos de locação ao setor de avaliações da Secretaria Municipal da Fazenda. Mesmo que alguns contratos fossem anteriores à ordem de serviço, as renovações deveriam ter passado pelo setor.
"Ficou evidenciado que havia total descontrole nas negociações, e a Fasc tratava essas locações como se participasse de uma relação privada, com margem de negociação não prevista em lei alguma", concluiu a sindicância.
Pelo menos 11 servidores, sendo nove de cargos comissionados e dois concursados, foram ouvidos como testemunhas durante a apuração. Entre eles, estão os ex-presidentes da Fasc Kevin Krieger e Marcelo Soares. Segundo procurador-geral adjunto, Roberto Silva da Rocha, a PGM fez as orientações à Fasc e, agora, cabe a ela regularizar os contratos dos aluguéis e responsabilizar os envolvidos. No caso de servidores que ainda atuam na função pública, um procedimento administrativo pode ser instaurado individualmente. Quanto aos servidores comissionados que não atuam mais na repartição pública, a Fasc teria de instaurar um processo judicial.
A sindicância foi aberta após ZH revelar, em novembro passado, a suspeita de que um casal com cargos em comissão na prefeitura simulou a venda de um imóvel no bairro Glória, alugado pela Fasc para instalação de um abrigo para crianças e adolescentes. O motivo seria o fato de ser vedado por lei negócio entre servidores públicos e empregador. A partir de apuração da Polícia Civil e do Ministério Público, o presidente da instituição na época, Marcelo Soares, e outras três pessoas se tornaram rés por peculato.
CONTRAPONTOS
O que diz a Fasc:
- Por meio de nota, informou que está seguindo as orientações da Procuradoria-Geral do Município e que tramita junto à Secretaria Municipal da Fazenda o processo de devolução de quatro imóveis. Diz que aguarda liberação de recursos para providenciar a reforma das casas.
- Afirma que a Osicom foi a vencedora de um edital que propõe convênio pleno para assumir a gestão de quatro abrigos residenciais de crianças e adolescentes. A entidade ficará responsável por 100% das despesas do acolhimento e funcionamento dos abrigos. De acordo com o edital, o convênio é de 24 meses podendo ser prorrogado por termo aditivo. Com o convênio, a Fasc se exime das questões burocráticas, como os contratos de aluguéis, e se responsabiliza apenas por repassar R$ 3,5 mil mensais por criança abrigada. Um segundo edital que está em fase de elaboração deve ser lançado no mesmo molde para atender outros seis abrigos que atendem crianças e adolescentes.
- Com relação aos 20 imóveis restantes, a Fasc garantiu que cada um dos contratos, dentro das suas peculiaridades, será regularizado, conforme orientações da PGM, mas ainda não tem prazo.
O que diz Kevin Krieger, ex-presidente da Fasc (atuou de janeiro de 2009 a abril de 2012 e de fevereiro de 2013 a janeiro de 2014)
O ex-presidente disse que não tem como responder sobre as irregularidades apontadas na sindicância sendo que não sabe do que se trata. Ele lembra que respondeu algumas perguntas pontuais da PGM, mas que não teve acesso ao processo. Por telefone, garantiu que durante a sua gestão não houve intenção de superfaturar imóveis e que a administração foi clara. Krieger comentou sobre a dificuldade de alugar imóveis para fins de abrigo de crianças e adolescentes ou acolhimento de jovens infratores.
– Com certeza não houve nenhum superfaturamento. Pode ter havido algum erro administrativo na hora em que fizeram as contratações, mas não teve nenhuma sacanagem de querer botar aumento para esta ou aquela pessoa – disse.
O que diz Marcelo Machado Soares, ex-presidente da Fasc(atuou de janeiro de 2014 a janeiro de 2017)
ZH tentou contatos com Soares, mas não o localizou, e com o advogado que o representou em outro processo envolvendo a gestão na Fasc, mas não obteve retorno.
PAGOS, MAS DESOCUPADOS
ZH visitou os imóveis que estariam em desuso, segundo a sindicância. Veja a situação:
1) Abrigo Residencial (Rua General Telino Chagas Telles, 165, Rubem Berta)
Estava em desuso quando visitado pela comissão sindicante. Na semana passada, uma funcionária terceirizada que trabalha no abrigo há um mês disse a ZH que a casa está sendo ocupada por oito crianças e um casal. Ela confirmou que há um depósito no local e alguns cômodos desocupados.
2) Albergue Municipal (Rua Comendador Azevedo, 215)
A comissão sindicante detectou que o imóvel não era mais ocupado pelo Albergue Municipal e estava sendo usado para armazenar bens de consumo e limpeza e estava sendo utilizado para lavagem de roupas do Centro Pop 3. Porém, ZH encontrou o imóvel depredado e com resquícios de abandono. Não há movimento no local, segundo vizinhos.
3) Abrigo (Rua Jataí, 690, Cristal)
A reportagem encontrou o imóvel nas mesmas condições que a comissão sindicante: desocupado, lacrado e depredado. A imobiliária teria sido notificada sobre o encerramento do contrato, mas até março, segundo consta na sindicância, o imóvel não havia sido devolvido.
4) Quero-Quero (Rua Padre João Batista Réus, 838, Tristeza)
Segundo a sindicância, o imóvel foi devolvido ao proprietário sem o pagamento dos reparos orçados em R$ 70 mil. A comissão avaliou que imóvel estava bastante danificado. O novo inquilino disse a ZH que que entrou na casa em péssimo estado e que precisou pagar quatro caminhões para tirar lixo e entulho que havia na propriedade. Ele conta que precisou consertar canos e pagar contas de luz e água atrasadas.
5) AR1 Sabiá (Barro Vermelho, 337, Restinga)
A comissão constatou que o imóvel estava em desuso e depredado. O proprietário Luiz Carlos Fraga disse a ZH que o aluguel foi pago por quase um ano sendo que o imóvel já estava desocupado e a Fasc não providenciou a reforma. O contrato também não foi rescindido. Fraga entrou com processo judicial para reintegração de posse e pede R$ 70 mil em aluguéis atrasados.