Para quem passeava pelo Brique da Redenção ou tomava um mate sentado no gramado, era apenas mais um domingo no parque. Para as dezenas de participantes da caminhada que marcou a primeira Parada Livre de Porto Alegre, entretanto, cada passo à frente naquele junho de 1997 era um divisor de águas.
– As pessoas nos olhavam com espanto, curiosidade. Nossa ideia era romper com o armário, sair da clandestinidade. Já militávamos, mas queríamos visibilidade – lembra Célio Golin, um dos fundadores da ONG Nuances.
Àquele tempo, o evento pouco se assemelhava ao show de um dia inteiro que reúne milhares e promete movimentar o Parque Farroupilha neste domingo: era uma marcha colorida, mas ainda tímida, com faixas, apitos, bandeiras e gritos de protesto. Assumir a própria sexualidade era um tabu ainda tão grande e imerso em preconceitos que algumas mulheres lésbicas usavam máscaras em tecido para não serem reconhecidas.
– Era uma coisa nova para todo mundo: para quem estava vendo e para quem estava fazendo. Tinha algumas dezenas de pessoas, entre homens, travestis e poucas mulheres – conta Cláudia Penalvo, integrante da ONG Somos.
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A caminhada que percorreu a Rua José Bonifácio e se encerrou na Rua Vieira de Castro, em frente à sede da Nuances, com um show improvisado de drag queens, queria desmistificar a homossexualidade após tempos especialmente difíceis para a comunidade LGBT. A multiplicação de casos de aids e o tratamento da homossexualidade como patologia por alguns setores colocavam mais lenha na fogueira da discriminação, além de fomentar um comportamento enrustido pela vergonha.
No ano seguinte, os participantes já eram algumas centenas. Pouco a pouco, máscaras eram deixadas de lado e novas pessoas surgiam na Parada, que teve o primeiro estopim na terceira edição, quando um futebol de drag queens em frente ao Monumento ao Expedicionário encontrou o viés pop.
– Lembro que tinha crianças, senhoras e senhores. Eles deliravam – recorda Glória Crystal, apresentadora do evento até a edição passada.
Com o sucesso, vieram as conquistas, mas também os conflitos. Em meados dos anos 2000, as duas principais ONGs envolvidas com a organização, Nuances e Somos, romperam. Por três anos, Porto Alegre conviveu com duas paradas. Uma reunião em 2007 selou a paz entre dois grupos em busca de uma causa comum: a Parada Livre era cada vez mais entendida como parte significativa da luta de populações discriminadas pela conquista e garantia de direitos políticos que os colocassem em igualdade com outros setores da sociedade.
– Nos demos conta de que tínhamos interesses comuns e tínhamos de andar juntos – diz o artista visual Sandro Ka, do Somos.
Pauta política em 2016
Hoje, 10 coletivos, entre ONGs, movimentos estudantis e feministas e um grupo de mães, participam da organização do evento, que chega à 20ª edição mais político. Shows de gogo boys, drag queens, DJs e músicos da cena LGBT dividirão espaço com falas sobre a importância da luta pela garantia de direitos e contra a homolesbotransfobia (agressões verbais ou físicas a gays, lésbicas e transexuais).
– Reforçamos a pauta política. Precisamos fazer um contraponto ao conservadorismo, mostrar um outro modo de estar na sociedade. Isso faz a riqueza da democracia – destaca Cláudia Penalvo.
A violência contra os LGBT deve ser um dos principais temas abordados durante o evento. Isso porque, embora nos últimos 20 anos tenha havido avanços significativos, como o direito ao casamento civil e o uso do nome social por transexuais, a impunidade contra atitudes discriminatórias ainda preocupa.
Nova geração
A primeira Parada Livre da Capital tinha à frente um público adulto. Um dos mentores do evento, Célio Golin já passava dos 30 anos em 1997.
Duas décadas depois, o cenário modifica-se aos poucos. Embora boa parte dos organizadores tenha participado da maioria das edições do evento, cresce o número de jovens em idade universitária que se aproximam da Parada Livre.
– A luta de todos esses anos abriu um espaço para que as novas gerações consigam assumir mais cedo a sexualidade. Se há 20, 25 anos achávamos que era impossível andar de mãos dadas, hoje não há onde não se veja isso. Há grupos nas universidades, onde antes ninguém se assumia – avalia Célio.
Dos grupos universitários surgem alguns dos mais novos – e jovens – integrantes da organização do evento. Estudante de Direito da UFRGS, Luciano Victorino, 22 anos, teve o primeiro contato com a militância LGBT por meio do coletivo Juntos!. Foi com integrantes do grupo que frequentou pela primeira vez a Parada Livre, em 2012.
– A militância foi o que me ajudou a sair da vergonha para o orgulho. Tinha 18 anos quando fui à Parada pela primeira vez. Foi emocionante ver que não estava sozinho – lembra.
Temática abrangente
Nem gay, nem LGBT. Na Capital, a parada é livre. O nome diferente da maioria dos eventos semelhantes de outras capitais não é por acaso, nem pretende desvincular o evento dos grupos que o criaram. Mas deixa a porta aberta a quem quiser entrar.
– O nome quer abranger a diversidade sexual e até mesmo outros grupos, como o movimento negro e o movimento feminista. Busca ampliar o leque das expressões de diversidade que existem – reflete o psicólogo Maurício Nardi, 28 anos.
Nardi considera a visibilidade uma das principais conquistas do evento, por motivar que outras pessoas se engajassem nas lutas dos direitos de minorias.
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– A parada ampliou a discussão sobre o tema, mostrou que as resistências são legítimas, e isso transforma as pessoas. Mas ela também é uma conquista de direitos em si mesma, porque celebra o espaço público e seu uso de uma maneira diversa – diz.
Drags comandam a festa
Começou no improviso: em cima de um carro de som de sindicato, as então drag queens Glória Crystal e Laurita Leão resolveram interagir com o público que circulava pela Rua Vieira de Castro, depois da caminhada que marcou a primeira edição.
– A gente gritava uns bordões, fazia graça, e as pessoas começavam a se aproximar – conta Glória.
A simpatia do público pelas drag queens foi determinante para as edições seguintes do evento, que passaram a ser comandadas sempre por um trio de personagens travestidos de mulheres – neste ano, serão duas drag queens e a transexual Valéria Houston. Intercalar humor e pautas sérias virou estratégia da Parada de Porto Alegre, que, diferentemente de outras, preserva estrutura com palco fixo para apresentações.
– O que atrai as pessoas é que a drag queen é uma figura feminina exagerada, uma coisa mais agressiva. Fica engraçado – opina Charlene Voluntaire, uma das apresentadoras desta edição.
O evento conta com o apoio da prefeitura para montar a estrutura e shows de artistas voluntários. Além das apresentações diversas, há um bloco dedicado exclusivamente a novas drag queens, o New Generation.
Trans apresentando
Uma entonação à capela de I will always love you, de Whitney Houston, prendeu a atenção dos milhares que assistiam à Parada em 2006. Vestida com uma calça legging branca e uma camiseta com a palavra "orgulho" estampada, a dona da voz, Valéria Houston, fazia sua primeira participação no evento.
– Eu lembro nitidamente desse dia, da minha roupa, da expressão no rosto das pessoas. Hoje tem muitas trans que cantam, mas, à época, era uma coisa nova, porque todas dublavam – recorda a artista.
Mais de uma década depois, a cantora de 36 anos, que já se apresentou em Paris, participou de programas televisivos e tem uma longa carreira em bares da Capital, será a primeira apresentadora transexual do evento, ao lado de Charlene e Cassandra. Apesar da estreia, que encara como uma "grande responsabilidade", a artista natural de Santo Ângelo, no noroeste do Estado, já tem intimidade com o palco da Parada, onde pisou diversas vezes. Para Valéria, o convite representa a continuidade de uma luta que se iniciou com a mudança para a Capital, em 2005, e se fortaleceu no ano passado, após ter sofrido uma agressão transfóbica quando estava acompanhada do namorado:
– Com a arte, posso mostrar que há uma existência trans fora da marginalidade.
Sem número específico para o evento de domingo, ela espera poder dar uma palhinha ao público que acompanhar o evento no Parque Farroupilha. Para comandar a Parada Livre, já separou figurino especial, que considera de sorte: usará o mesmo vestido com o qual participou do Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, no mês passado.
– É um vestido azul de paetê com uma fenda enorme na perna. Parece uma sereia – diverte-se.
Marcha Lésbica
Até 2012, a Marcha Lésbica, coordenada pela Liga Brasileira de Lésbicas (LBL), era feita em data separada. Chamar atenção para a pauta específica das mulheres era o principal motivo para organizar um movimento à parte da Parada Livre. Em 2013, no dia programado, choveu forte e a marcha não saiu. Veio a oportunidade: as organizadoras decidiram, então, unirem-se à Parada Livre daquele ano. desde então, os dois eventos são organizados no mesmo dia. A Marcha ainda carrega o nome para dar maior representatividade à causa lésbica.
– Neste momento, é positivo que seja junto. A Parada Livre por si só agrega muitas pessoas, todas as classes sociais, a gente sempre diz que o morro desce para a parada aqui no Estado, o que é diferente do resto do Brasil. Em nível estadual, o movimento é bem articulado e considera a pauta das mulheres – diz Roselaine Dias, 47 anos, presidente do Conselho Estadual dos Direitos da População LGBT e representante da LBL.