* Professor de Jornalismo da Faculdade de Comunicação Social (Famecos) da PUCRS
Não é a primeira vez que Gay Talese se mete em encrencas. Repórter mítico das técnicas literárias aplicadas ao jornalismo, quase arruinou seu casamento por causa de uma apuração envolvente. Ele escrevia A Mulher do Próximo, retrato do comportamento sexual do povo americano, em meio à alucinante liberação que destravou a puritana América na década de 1970. Aos 43 anos, transformado em personagem do próprio texto, entregou-se às artes de uma masturbadora profissional, cena que descreve com detalhes na obra. Chegou a aceitar o emprego como gerente de uma casa de prostituição para conhecer as manhas do lugar. Sempre em busca da melhor história, nunca deixou de ser visto como um homem refinado e dedicado a desafios proporcionais a seu imenso talento. Produziu um perfil antológico de Frank Sinatra sem conversar com a fonte e desnudou o poderoso The New York Times, em O Reino e o Poder. Desta vez, no entanto, ele foi longe demais.
A nova polêmica envolve um trabalho que demorou 37 anos para ser publicado em versão preliminar na The New Yorker, no início de abril. Talese guardou em silêncio a história de uma fonte que havia presenciado um crime e cometido outros. Tudo começou em 7 de janeiro de 1980, quando o jornalista recebeu uma carta anônima e sedutora. Era uma oferta de um homem que depois se identificaria como Gerald Foss. O remetente havia comprado um motel em Aurora, no Colorado (EUA), em 1969, e instalado, no teto de parte dos 21 quartos, um sistema com falsas grades de ventilação para observar a intimidade dos frequentadores. Na mensagem ao jornalista, reconhecido pelo furor que causara com A Mulher do Próximo, Foss convidou Talese a conhecer o lugar e as anotações minuciosas que fazia havia pouco mais de uma década de voyeurismo planejado e invasão de privacidade. Talese topou. O problema é que, em meio à apuração, ocorreu um fato inusitado. Ou melhor, um crime, que irei detalhar mais adiante. Antes, falemos sobre a natureza da ética jornalística.
Uma visão funcional sobre a ética, aplicável às questões da comunicação, está baseada no conflito entre duas ou mais possibilidades de ação. Em A Ética na Comunicação (Penso/Artmed, 2011), Patrick Lee Plaisance explica esta concepção, ao argumentar que as nossas decisões éticas envolvem uma escolha, que se toma sempre entre dois ou mais valores de alcance moral. O sentido de conflito, aqui, está atrelado à ideia de choque e opção. O jornalista, neste caso, promove uma seleção pessoal, racional e justificável de um determinado caminho moral em detrimento de outros. O ponto de vista de Plaisance é cristalino: é muito difícil falar em ética de uma maneira geral, sem aplicar a um caso prático.
Voltando ao crime de Aurora. Um dia, quando Foss observava um casal, reparou que o homem era traficante e usava o motel como ponto de venda de drogas. Irritado, o proprietário aguardou uma saída dos amantes, entrou no ninho de amor monitorado e sumiu com o conteúdo ilícito da bolsa. Na volta da dupla, ao perceber o que havia acontecido, o traficante acusou a mulher de ser a responsável pelo sumiço das drogas. Ensandecido, agrediu-a, deixando-a desacordada. Tudo acompanhado pelo olhar invasor de Foss. A mulher seria encontrada morta no dia seguinte. Mas, no lugar de informar a autoria à polícia, o empresário silenciou: não queria correr o risco de ser descoberto. Talese soube do crime quando trocava correspondências com Foss e optou por não falar sobre ele porque havia assinado um contrato de preservação com a fonte. Quando os crimes prescreveram, Foss autorizou a publicação. Além disso, durante a apuração, Talese também usou as grades falsas para observar um casal. Mais uma vez: tudo em benefício da história.
Tão logo a também mítica The New Yorker circulou com a reportagem O Motel do Voyeur, Talese foi procurado pela imprensa, não para falar de seus truques narrativos, mas para dar explicações. É possível um jornalista saber que um crime contra a vida foi cometido e não publicar a história ou denunciar a autoria, com o argumento da preservação da fonte? Como se fosse imune a este tipo de cobrança, ele disse à britânica BBC que tinha o compromisso de proteger a sua fonte – algo realmente muito caro a qualquer jornalista – e que os seus 65 anos de jornalismo de excelência atestavam a qualidade do seu trabalho. Admitiu ter até perdido o sono antes de decidir embarcar neste enredo cinematográfico, mas não recusou o convite e optou por manter-se fiel a Foss, mesmo com o fantasma de uma criminosa invasão de privacidade. Passa a ser ironicamente premonitório o início escrito por Talese em 1971 para O Reino e o Poder: "Em sua maioria, os jornalistas são incansáveis voyeurs".
Retomando a hipótese de Plaisance, ética é confronto de valores. Eu peso e depois decido. Aplico o procedimento ao caso de Talese. Por um lado, devo proteger a minha fonte de informação e estabelecer com ela determinados contratos de apuração e revelação. Se não fosse assim, não haveria o off (informação repassada sem revelar a fonte) em jornalismo. Agora, esta aliança de preservação com a fonte antecede meu dever de cidadão perante a Justiça? Devo guardar uma informação de interesse público pelo tempo conveniente à publicação? Posso contar uma história a partir de informações obtidas criminosamente, como durante uma invasão sistemática de privacidade?
Avaliando a deliberação ética de Talese, parece evidente que a resposta é não para todas elas. Toda apuração jornalística envolve um custo, que não é só financeiro. É moral. Todos os dias, estudantes de Jornalismo questionam estes limites. Querem aprender como agir. A função do jornalista é contar histórias, mas, como se fôssemos um Maquiavel às avessas, no nosso cotidiano profissional os fins não podem justificar os meios. Nos trabalhos de Talese, que praticamente sacralizou um determinado jeito de fazer jornalismo humanizado, o espaço para dúvidas é ainda mais estreito. Desta vez, o senhor está errado.