*Mestre em Letras (UFRGS), com publicações sobre o samba e o carnaval
O avanço conservador no Brasil tem muitas facetas. Ocorre no cerceamento à liberdade de orientação e expressão sexual; na violação à liberdade das mulheres; na afronta à liberdade religiosa, sobretudo das comunidades de matriz africana; no cerceamento da liberdade de ir e vir, principalmente da juventude das periferias; na obstrução da liberdade para o uso comunitário dos espaços públicos; e por aí vai. Em comum, a ameaça às liberdades individuais.
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Poucas manifestações são tão caracterizadoras da liberdade quanto o Carnaval. Desde a Antiguidade, o período simboliza o extravasamento das emoções mais contidas durante o ano, a permissão para ceder aos "prazeres" da vida. A festa profana, antecedente da Quaresma, se consolidou como um momento de "inversão" e de afrouxamento das rígidas regras sociais.
O Carnaval no Brasil ganharia, ainda, outras cores e outras formas. Além das máscaras, dos carros alegóricos e das fantasias que remontam ao Renascimento europeu, irrompem a percussividade e o canto do povo negro e as múltiplas identidades que construíram o país. Mais do que apenas uma nova maneira de fazer carnaval, os brasileiros, a partir dos subúrbios cariocas, e posteriormente espalhando-se pelo país, fundam um novo gênero artístico, que assimila diversas outras linguagens (música, literatura, dança, teatro, circo, artes plásticas, audiovisual, moda e até a robótica e a internet) e cria uma nova síntese, o desfile de escolas de samba, e um novo gênero cancional, o samba-enredo. Este, ao narrar histórias mitificadas de sujeitos coletivos e seus desafios, num discurso hiperbólico, teve a proeza de, protagonizado por pessoas de baixa escolarização formal (ou mesmo analfabetas), retomar elementos do épico, um gênero literário que parecia fadado à extinção.
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Tudo isso é importante lembrar ao se falar do Carnaval brasileiro. Apesar de ser um acontecimento que remonta a séculos de civilização, curiosamente passa a correr riscos justamente no lugar que ganharia a alcunha de "país do Carnaval" - onde a festa se confundiria com a própria noção de "brasilidade". Se a designação muitas vezes parece incômoda, pois, como todo clichê, restringe, se consolidaria como um símbolo cultural capaz de aproximar a população e de atrair gente do mundo todo para o Brasil, impactando também a economia (dados do carnaval de 2015 no Rio de Janeiro apontam a arrecadação de R$ 2,2 bilhões para o município).
A despeito de seus méritos culturais e de sua potencialidade econômica, nas últimas semanas diversos prefeitos, de diferentes Estados e filiações partidárias, anunciaram que não realizariam o Carnaval neste ano. As manchetes dos jornais e dos portais, com pouca variação, dizem: "Prefeitura cancela o Carnaval para investir na saúde". O motivo invariavelmente é o mesmo: a "crise" nas finanças públicas.
Sem entrar aqui em qualquer caso específico, é claro que não dá para minorar a situação financeira complicada por que passam os tesouros públicos. Isso, no entanto, não é inédito. Em outros momentos da história, municípios, Estados e União atravessaram dificuldades econômicas e foram obrigados a conter gastos públicos. Inédito é o antagonismo criado em decorrência das referidas decisões: de um lado, a saúde; do outro, o carnaval.
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Tal polarização inventada entre a saúde e o Carnaval é absolutamente artificial e injusta. Ninguém em sã consciência vai achar que se deva retirar qualquer verba da saúde. Subjacente a esse (falso) conflito, localizam-se outras polarizações: primeiro, um menosprezo da cultura e do lazer diante de outros direitos sociais. Tanto os direitos culturais quanto os direitos à saúde e ao lazer estão previstos em diversas convenções e legislações, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e a Constituição Federal, de 1988. Se ninguém ousa mexer nos recursos da saúde para deslocá-los a outras áreas, por que com a cultura, que possui orçamentos infinitamente menores, isso é visto com naturalidade por gestores e pela própria sociedade?
Dentro do âmbito da cultura, porém, há diferenças. Possivelmente em muitos lugares o mandatário não se atreveria a tirar recursos de outros eventos (inclusive aqueles em que são contratados artistas de renome nacional, com altos cachês). Com o carnaval, contudo, expressam-se posições que beiram o puro preconceito - de gosto estético? De origem social? De raça?
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Nas situações em que o poder público não possa, de fato, ajudar a financiar os desfiles, a solução minimamente esperada do gestor público seria a mobilização junto ao comércio e à indústria locais, incentivando a formação de um mecenato, e medidas como a colocação de estruturas subutilizadas à disposição das agremiações carnavalescas, entre outras possibilidades. Tudo, menos o estímulo a uma polarização que não existia nem deveria existir jamais.
Polarização, essa, que só se tornou viável no contexto atual de acentuação de outras polarizações, fomentadas por discursos de intolerância à expressão do outro. Coerentes, essas polarizações e intolerâncias muitas vezes se somam, ganhando a forma de ódio nas ruas e nas redes. Em comum, como dito no início, está a ameaça às liberdades individuais. Liberdade que o carnaval representa há séculos, mesmo que por poucos dias - e que, surpreendentemente na alvorada do século 21, parece ser um valor a lutar.
A alegria incomoda.