*Diretor da Audiplo e Professor da ESPM-Sul
Paris foi o cenário de várias manchetes internacionais de 2015. No começo de janeiro, simpatizantes do Estado Islâmico atacaram a redação do Charlie Hebdo. O atentado resultou em uma dezena de mortos e vários feridos, e estimulou um debate acerca dos limites da liberdade de expressão. De lados opostos se colocaram aqueles que defendiam o direito de a publicação expor com liberdade irrestrita seu ponto de vista sobre temas polêmicos e aqueles que viam a insensibilidade referente ao tratamento de diferentes crenças e culturas pelo Charlie como tradução de um comportamento herdeiro da soberba colonialista sem, contudo, justificarem os atentados a partir disso. A polarização do debate desviou a atenção das causas dos atentados para a infindável discussão a respeito da relação entre o particular e o universal no Ocidente, questão filosófico-antropológica de fundamental importância para as relações internacionais, mas de difícil enquadramento empírico. Apenas após os atentados de novembro é que dois aspectos essenciais para o entendimento das ações terroristas na França voltaram à tona: a situação dos filhos das antigas colônias francesas do norte da África e a ascensão do Estado Islâmico.
A ideologia por trás do Estado Islâmico e de seu ímpeto de "salvar o mundo"
As semelhanças entre os terroristas são suficientes para demonstrar o peso da herança colonial mal resolvida nos dois atentados. A maioria dos envolvidos era de filhos de argelinos e vivia em subúrbios dos grandes centros urbanos na França ou na Bélgica, regiões com índice de desemprego entre os jovens que alcança o dobro da média nacional e com grau de instrução formal bem menor. A maior parte também era de recém-convertidos, sendo comum entre eles um histórico policial marcado por prisões decorrentes de pequenos delitos e pelo uso de entorpecentes. Eram jovens, pois, que não se coadunam com a imagem que temos quando pensamos nos terroristas como "fundamentalistas islâmicos". Na França, a explosão dessa juventude excluída havia se manifestado nas revoltas de 2005, quando em todo o país mais de 5 mil veículos foram incendiados após a morte de três adolescentes em uma operação policial. Nicolas Sarkozy, ministro do interior na época, foi responsável por declarações polêmicas e contribuiu para que o episódio fosse tratado pela imprensa francesa como um "levante muçulmano" no país. Depois, como presidente, Sarkozy esteve à frente da aprovação da "lei do véu", que proíbe o uso da burca e do niqab em espaços públicos franceses. De lá para cá, pouco se avançou para que os filhos da colonização fossem integrados. Pelo contrário, após a crise de 2008, a extrema direita cresceu com base em discursos xenófobos e islamofóbicos. Em toda a Europa, o centro e a esquerda passaram a apoiar políticas mais conservadoras, com o intuito de atrair o voto da direita. No caso francês, as intervenções no Iraque, no Mali e na Síria podem ser vistas por essa perspectiva.
O futuro da política internacional no Oriente Médio
O segundo aspecto diz respeito à geopolítica do Oriente Médio. A bagunçada transição de um regime sunita para um xiita no Iraque, promovida pelos Estados Unidos após a invasão do país em 2003, é o começo de tudo. Desconfortável com nova preponderância de governos xiitas na região (Irã e Iraque), a Arábia Saudita esforçou-se para a derrubada do regime de Assad na Síria, aliado de Teerã. Em função da aliança com os sauditas, os EUA e seus parceiros europeus não aceitaram negociar com Damasco, e embarcaram em uma guerra por procuração ao apoiar grupos armados "moderados", incluindo, entre eles, a Al-Nusra, facção da Al Qaeda no país. O problema é que, além de Teerã, o regime de Assad também é aliado da Rússia. Com o veto dos russos a qualquer autorização do Conselho de Segurança da ONU para uma intervenção no país, o conflito se arrastou por anos e resultou no vácuo de poder necessário para que o Estado Islâmico - que emergira no norte do Iraque como resultado do descontentamento dos sunitas com os desmandos do governo xiita - avançasse para o território sírio.
Como a França pode conjugar o combate ao terror e o multiculturalismo
É nesse terreno que o radicalismo islâmico e os subúrbios da Europa se encontram. O antixiismo e o antiocidentalismo são as duas faces da mesma moeda ontológica, a saber, o wahhabismo. Esta é a ideologia fundamentalista utilizada pelos sauditas ao patrocinar o envio de combatentes de todo o mundo para lutar contra o governo de Assad. Muitos desses jovens são europeus cooptados por líderes religiosos radicais que encontram nas periferias europeias o ambiente propício aos sentimentos antiocidentais.
A crise dos refugiados é outra consequência do caos instaurado no Oriente Médio. Em 2015, estima-se que um milhão de refugiados tenham chegado à Europa. Desses, a maior parte são provenientes da Síria (50%), do Afeganistão (20%) e do Iraque (6%), países que sofrem com intervenções dos EUA e seus aliados. O triste é que o fluxo de refugiados é fruto de uma estranha contradição: o Ocidente promove intervenções militares para levar democracia e direitos humanos a esses países, as intervenções fracassam, a barbárie se instaura (Estado Islâmico no Iraque e na Síria, ressurgimento dos Talibãs no Afeganistão) e as pessoas afetadas fogem para a Europa em busca de direitos humanos e democracia. Frente à falência do sistema de asilo da União Europeia, os solicitantes de refúgio são equiparados aos bárbaros dos quais tentam fugir e tratados como potenciais ameaças aos valores europeus por amplos setores das sociedade.
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Esses acontecimentos ilustram as mazelas de um mundo em transição para a multipolaridade, após o período unipolar dos Estados Unidos, nos anos 1990. Talvez o evento mais significativo de 2015 nesse sentido tenha sido o início das atividades militares da Rússia na Síria. Pela primeira vez desde a Guerra Fria a Rússia se projeta militarmente para além do espaço da antiga União Soviética. A manutenção das sanções econômicas contra o país empurrou a Rússia para os braços da China, com a qual Moscou estreitou seus laços, e instigou a ação mais assertiva da Rússia em nível externo. Essa transformação pode ser sentida inclusive em nossa vizinhança. Ou seria apenas coincidência que as relações entre Cuba e Estados Unidos iniciassem sua normalização alguns meses após a assinatura de um acordo de cooperação militar entre Rússia e Cuba? Seria essa uma tentativa de troco da Rússia pela ingerência norte-americana na crise ucraniana?
Apesar desses acontecimentos negativos, o ano de 2015 trouxe algumas notícias boas. Na África, também afetada pelo radicalismo do Boko Haram, aos poucos se consolida a vitória contra o Ebola. Após 4,8 mil mortes na Libéria, o país declarou o fim da epidemia em 9 de maio, e o aparecimento de três novos casos em novembro foi bem administrado pelo governo. Serra Leoa declarou o fim da epidemia em 7 de novembro, após aproximadamente 3,9 mil mortes. A situação na Guiné ainda preocupa e o vírus é combatido pelas autoridades, tendo causado em torno de 2,5 mil mortes. Dos mais de 28 mil infectados pelo Ebola, aproximadamente 11,3 mil perderam a vida, mas a epidemia dá sinais de arrefecimento. Na América do Sul, a vitória da oposição nas eleições venezuelanas foi aceita pelo presidente Nicolás Maduro, apesar das ameaças feitas antes das eleições sobre sua disposição em não reconhecer os resultados das urnas em caso de derrota. Ainda é cedo para conclusões, mas trata-se de um fato importante para o fortalecimento das instituições políticas venezuelanas. Por fim, voltamos a Paris, onde os participantes da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas celebraram um acordo para evitar o aquecimento global do planeta. O acordo representa um fio de esperança sobre a possibilidade de cooperação internacional para a proteção das novas gerações. Vamos torcer para que a Paris da COP 21 seja a Paris a figurar nos noticiários internacionais em 2016.