As observações mais recentes de neurocientistas como Daniel Dennett mostram que a atividade biológica inicia cerca de 200 milissegundos antes do cérebro formar a ideia, ou a imagem de uma ideia. Nossos neurônios, uma multidão de girinos sem um rei, decide com base em suas necessidades, e estas iniciam e terminam nas demandas de todo o ser biológico: preservação e conforto. Antes de você decidir se avançará nesta leitura, seu organismo estará avaliando se vale a pena o dispêndio de tempo e calorias. Ao menor desconforto, vira-se a página ou parte-se para outra atividade. Vejamos o que decidem os neurônios ora conectados a sua retina e a estas letras e ideias.
As teses do assim chamado "darwinismo neuronal" (Edelman, 1978, com Pinker, 1997) ofendem a religiosos e espantam a muitas pessoas educadas na tradição platônica e na cultura tradicional, em que o corpo é prisão da alma e a mente, a soberana que pode, com livre arbítrio, optar e decidir. Ofensa e espanto, neste caso, da mesma ordem dos sentimentos dirigidos a Darwin, desde que publicou A Origem das Espécies (1859). Freud também revelou que os comportamentos humanos são motivados por complexos relacionados ao desejo erótico, e nos esclareceu que a mente é muito mais complicada e sujeita a determinações tidas como irracionais do que o supõem a moralidade e a filosofia idealista. Esta, por sua vez, foi superada pela filosofia fenomenológica, do alemão Edmund Husserl (1859 - 1938) e do francês Maurice Merleau-Ponty (1908 - 1961), que fizeram ver que o conhecimento decorre da percepção, e que quem percebe é o corpo. Estava pavimentado o caminho para compreendermos que a mente é uma parte do corpo, portanto, integrada a uma complexa rede de determinações orgânicas; seu pretenso domínio sobre o corpo é contestado permanentemente pelo estômago, pelos genitais, pelos órgãos e nervos sensoriais e por outros órgãos que têm, cada qual e conjuntamente, suas razões e determinações. O narcisismo do pensamento deve ceder lugar a uma compreensão mais ampla, em que, paradoxalmente, se reforça a exigência de vigor
e autoria nas decisões éticas, diante do cerco de tantas forças perturbadoras.
Experimente, a partir destes critérios, compreender as motivações suas, das pessoas à sua volta, das culturas e nações, à luz das razões darwinianas - de modo simplificado, prioridade para sobrevivência e conforto. É possível que o amplo rol de causalidades para os fatos e processos históricos, que colecionamos desde os gregos (políticas, religiosas, econômicas, sociais, eróticas, estéticas etc.), venham a capitular diante da autoridade das razões biológicas, elaboradas como motivações culturais. Quanto das nossas decisões individuais e coletivas deve-se aos imperativos genéticos que nos constituem, primordialmente, como uma espécie? As prerrogativas da cultura, da personalidade e da ética são postas em juízo, e passamos a reconhecer mais facilmente em que pontos o ganho de eficiência das civilizações responde a imperativos biológicos clamados por nossa orquestra de genes e células militantes. O que ora as neurociências examinam é como se dá organicamente este processo, entre corpo, mente e ideia, mas isto repercute sobre toda a visão de história.
Conversando sobre isto com meu amigo, o pianista de blues Luciano Leães, e sobre os efeitos de uma visão darwiniana para a interpretação da história, colocou-se a questão: e como se passa com as sociedades éticas, ou seja, aquelas que têm simultaneamente um alto grau de competitividade e um nível de honestidade superior ao que conhecemos nestas latitudes? Ora, lá os corpos percebem que sobreviverão mais e melhor se respeitarem a faixa de pedestres, estejam motorizados ou a pé, assim como notam que o zelo contratual assegura conforto e segurança superiores. Resta considerar por que naquelas sociedades a evolução demográfica ora é recessiva. Resta compreender também por que é tão difícil em nosso ecossistema urbano, em nossa cultura, em nossa nação, perceber-se a verdade elementar acima (sobrevivência de pedestres, um símbolo) como uma virtude coletiva. Estarão falhando os girinos, ao não produzirem códigos culturais eficientes para nossa sobrevivência?
É possível, ademais, que um subgrupo humano tenha desenvolvido um tal sistema de desafios e recompensas em que a falta de ética seja gratificante, e que este induza a decisões contrárias a nossa sobrevivência coletiva mas aparentemente benéficas para aqueles indivíduos e seus bandos. Este subgrupo habita no andar superior, chama-se oligarquia brasileira, e não pode pensar que sobreviveremos todos neste cenário de rapinagem e desfaçatez ética. Sua fronteira poderá ser uma batalha real entre o homo oligarchicus e o homo sapiens sapiens. Está em jogo nosso futuro, e só avançaremos se não nos conformarmos a viver no lixo, e lutarmos para que prosperem entre nós as melhores ideias que a humanidade produziu, e de que é sempre capaz.
*Francisco Marshall escreve mensalmente no PrOA.
Leia todas as colunas do Caderno PrOA