Imagine um vaqueiro tosco e gente boa prestes a virar presidente da República: ele não entende nada de política, mas sua aparente honestidade cativa a população inteira, cansada de tanta corrupção. Na última hora, o caubói desiste. E pede aos eleitores que reflitam antes de alçar ao governo um aventureiro qualquer.
Personagem da comédia Un Presidente de a Sombrero, filme da Guatemala lançado em 2007, o vaqueiro Neto não chegou à presidência, mas o ator que o interpretava, sim: foi eleito no mês passado. O humorista Jimmy Morales, 46 anos, veja só, nunca entendeu nada de política, mas sua aparente honestidade cativou a população inteira, cansada de tanta corrupção.
Sem jamais ter ocupado um cargo público, ele aproveitou o clima de revolta na Guatemala - onde o presidente havia sido preso por desviar dinheiro das alfândegas - e apresentou-se como representante da "não-política", ostentando o slogan "Nem corrupto, nem ladrão". Resultado: 67% dos votos no segundo turno.
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No Brasil, o cenário não é tão diferente do que assolava os guatemaltecas três anos antes da eleição presidencial. Além de escândalos sucessivos e de um governo com índices anêmicos de popularidade, os nomes mais cotados para disputar o pleito em 2018 amargam uma rejeição inédita. Segundo o Ibope, 55% não votariam em Lula (PT) "de jeito nenhum"; 54% desprezam José Serra (PSDB); 52% rejeitam Geraldo Alckmin (PSDB) e Ciro Gomes (PDT); 50% não querem saber de Marina Silva (Rede); e 47% refutam Aécio Neves (PSDB).
- Podemos apontar um processo de despolitização em vários países do mundo, mas poucos com a intensidade e a velocidade que vemos no Brasil - afirma o cientista político Leonardo Avritzer, professor da Universidade Federal de Minas Gerais.
Não quer dizer que um Jimmy Morales se tornará presidente, mas a descrença do eleitorado na política tradicional, somada à resistência dos principais partidos em formar novos líderes, abre espaço para fenômenos midiáticos como o humorista da
Guatemala.
- As pesquisas para prefeito de São Paulo ilustram essa percepção - diz o cientista político João Feres Júnior, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
Na cidade mais populosa e influente do país, o apresentador de TV Celso Russomanno (PRB) - deputado federal mais votado do Brasil na última eleição, seguido pelo palhaço Tiririca (PR) - lidera as intenções de voto com 34%, conforme o Datafolha. Em segundo lugar, tecnicamente empatado com a tarimbada Marta Suplicy (PMDB), vem o também apresentador José Luiz Datena (PP), com 13%. A disputa ainda conta com nomes como o empresário João Doria Jr. (PSDB), outro conhecido do público pela TV, e o pastor-deputado Marco Feliciano (PSC).
- Em um momento de evidente descrédito na política, os partidos têm apostado cada vez mais nessas figuras midiáticas. O raciocínio é: por que vou construir um nome qualificado se posso, com um investimento bem mais baixo, trazer alguém já consolidado na cabeça das pessoas? - analisa o sociólogo Wagner Romão, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Pode-se fazer um paralelo com o futebol: se o objetivo é ganhar o campeonato a curto prazo, é melhor contratar um atleta pronto do que lapidar um menino de 12 anos que, uma década depois, talvez possa virar um craque. O problema é que a boa política, ao contrário do que o senso comum parece acreditar, precisa de jogadores lapidados, garante o professor Romão.
- Para exercer qualquer atividade, geralmente é melhor chamar um profissional. E profissionais da política estão em falta no Brasil, o que é muito ruim. O político de verdade tem perfil agregador, tem talento para construir consensos, para facilitar negociações, e isso resulta em uma sociedade menos instável e agitada, além de reduzir os conflitos sociais - avalia o sociólogo. - A própria presidente Dilma, que nunca havia participado de uma eleição, tem suas maiores dificuldades relacionadas a essa falta de habilidade. Fazer política é algo que se aprende.
Falando em Dilma, o PT era o partido mais tradicional na formação de quadros, transformando metalúrgicos, professores, bancários e sindicalistas em expoentes da política nacional na década de 1980. A renovação de líderes foi estancada com o sucesso eleitoral - e o partido afundou em descrédito com a crise do governo.
Uma pesquisa do Datafolha realizada na semana passada, em São Paulo, mostrou que apenas 11% dos eleitores têm preferência pela sigla, o pior índice desde 1989 - esse percentual já foi de 35%. Por outro lado, o PSDB não cresceu: tem a simpatia de 10% do eleitorado.
- Se os partidos estão desacreditados, se a política é retratada pela imprensa apenas como uma bandalheira, se os políticos profissionais são vistos como ladrões profissionais, é natural que ganhem força pessoas desligadas desse meio - afirma o cientista político João Feres Júnior, da Uerj.
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Não há como ignorar a campanha de Tiririca, que nas últimas duas eleições para deputado federal superou um milhão de votos sem qualquer proposta, consagrando o bordão "Pior do que tá, não fica". A despolitização de seu slogan, embora mais cômica, não difere muito da que elegeu o humorista Jimmy Morales na Guatemala: "Nem corrupto, nem ladrão".
- É bom esclarecer que a despolitização ocorre quando as questões políticas são deixadas de lado ou quando a sociedade entende que os problemas políticos não se resolvem de maneira política - explica o professor Henrique de Castro, do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Castro identifica no Brasil um momento de despolitização dos debates - com adjetivações e ataques pessoais se sobrepondo à discussão do conteúdo -, o que contribui para um ambiente de ojeriza à política. Por exemplo: os eleitores do PSDB são coxinhas, os do PT são petralhas. Ou, na última campanha para a Presidência: Dilma teria assaltado bancos na ditadura, Aécio seria usuário de drogas. Ou, mais recentemente: qualquer ameaça ao governo é golpe, qualquer motivo justifica um
impeachment.
- Quando a sociedade passa a debater nesses termos, há um ambiente propício para pensar que os problemas políticos podem ser solucionados sem política, o que é uma ilusão - conclui o professor da UFRGS.
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Mas todos os especialistas ouvidos pela reportagem ponderam que, até agora, os Jimmy Morales brasileiros se deram bem nas eleições para o Legislativo, na qual o voto de protesto é mais comum, não há debates na TV e o acirramento das diferenças ajuda na conquista de um nicho. Quando o pleito é para o Executivo, a coisa aperta. Tanto é que, na última eleição para a prefeitura de São Paulo, o deputado mais votado do país, Celso Russomanno, acabou fora do segundo turno.
- Mas o sentimento contra a política está muito forte. Na eleição para presidente, em 2018, não vejo a população referendando esses nomes tradicionais - prevê o cientista político Jairo Nicolau, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
É bom que os novos líderes surjam logo.
"Podemos apontar um processo de despolitização em vários países do mundo, mas poucos com a intensidade e a velocidade que vemos no Brasil"
Leonardo Avritzer, professor de Ciência Política da UFMG
"Para exercer qualquer atividade, é melhor chamar um profissional. O político de verdade constrói consensos, e isso resulta em uma sociedade menos agitada"
Wagner Romão, sociólogo e professor da Unicamp
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