Texto cita falta de obras e de conservação
Foto: Júlio Cordeiro/Agência RBS
Um relatório do Tribunal de Contas do Estado (TCE) aponta uma série de irregularidades no processo de revitalização do Cais Mauá, em Porto Alegre.
Documentos obtidos por Zero Hora por meio da Lei de Acesso à Informação indicam que a empresa Cais Mauá do Brasil teria descumprido itens do contrato ao desrespeitar prazos para apresentar projetos e documentos, alterar a composição acionária do consórcio sem autorização prévia e não comprovar capacidade financeira para tocar a obra. A auditoria do TCE recomendou que o Estado regularizasse as pendências "sob pena de rescisão do contrato de arrendamento".
Consórcio esperava concluir reforma em quatro anos
O processo 2765-02.00/13-8 do Tribunal, que segue tramitando e ainda não foi julgado, acompanha o andamento do contrato firmado entre a Superintendência de Portos e Hidrovias (SPH) do Estado e o consórcio Cais Mauá do Brasil. Desde 2012 até agosto deste ano - data do último documento anexado ao processo, a auditoria cita problemas recorrentes.
Um deles é a falta de documentação da empresa que atenda a uma das exigências da licitação: comprovar um patrimônio líquido de pelo menos R$ 400 milhões. O objetivo dessa obrigação, que impediu a participação de empresas de menor porte na concorrência, é garantir que o vencedor tenha cacife para fazer a obra de revitalização. Porém, até a mais recente auditoria, essa comprovação continuava pendente.
Obra começou com demolição de estruturas
Um trecho do relatório do TCE diz: "Em que pese o pagamento do arrendamento por parte PCMB (a Cais Mauá do Brasil), a mesma não cumpre as suas obrigações contratuais e não inicia sequer as obras de restauro dos armazéns, uma vez que não tem capacidade financeira para tal feito. Resultando na interdição da área do Porto Cais Mauá e impedindo o acesso da população ao Cais".
Trecho do relatório
Como foi descumprido um período de 180 dias para apresentar a chamada Carta de Estruturação Financeira e, além disso, um prazo adicional de 90 dias, a auditoria cita um trecho da 13ª cláusula do contrato de arrendamento que diz ficar "facultado à arrendante, SPH, proceder à declaração de caducidade do Contrato" nessa situação - ou seja, se o Estado pretendesse, poderia buscar a anulação do acordo com a empresa. Superintendente da SPH entre 2012 e 2013 e alvo de questionamentos do TCE no processo, Pedro Homero Obelar admite que, pessoalmente, defendia o rompimento.
- Nada do que estava previsto foi cumprido até hoje. Nem a conservação dos armazéns, que estão se deteriorando, foi feita. Entendo que o contrato nem tem mais validade. Quando eu estava na SPH, a rescisão não ocorreu porque o governo, por meio da Casa Civil, entendia que o contrato deveria ser mantido - revela Obelar.
Chefe da Casa Civil durante o governo Tarso Genro, Carlos Pestana confirma que havia interesse em manter o acordo em razão da importância atribuída pela sociedade à obra.
- Foram constatados apontamentos do TCE, que motivaram respostas ao Tribunal. Era um processo em andamento e, até aquela ocasião, não víamos justificativa para romper o contrato - sustenta Pestana.
O que prevê o projeto de revitalização do Cais Mauá e quem está contra
As indicações de irregularidades feitas pelo Tribunal levaram a SPH a aplicar multa de R$ 2.712,85 ao consórcio, em janeiro de 2014, pelo atraso na apresentação dos projetos executivos. Mas o valor é citado como "insignificante" no texto de auditoria.
Como resultado dos apontamentos, o Ministério Público de Contas do Estado sugere que, "em que pesem os consistentes elementos indicativos de enquadramento que poderiam resultar na rescisão do contrato firmado", o TCE ofereça aos atuais gestores fazer os ajustes necessários antes de tomar uma medida extrema. A assessoria de imprensa da Secretaria dos Transportes do Estado, que trata do assunto no atual governo, informou que "não há cogitação em relação à anulação do contrato, mas sim a determinação para que se busque possíveis inconformidades e, caso existam, sejam adotadas todas as medidas saneadoras".
O QUE DIZ O RELATÓRIO
Confira alguns dos pontos citados como irregulares no relatório do TCE:
Falta de garantias financeiras
A 13ª cláusula do contrato de arrendamento do cais estabelece que o vencedor da licitação do cais teria 180 dias (contados a partir da data em que tomou posse da área: 6 de março de 2012) para apresentar os documentos assegurando sua capacidade financeira para tocar a obra. O documento, chamado de Carta de Estruturação Financeira, deveria provar que a empresa dispõe de um patrimônio líquido de pelo menos R$ 400 milhões - exigência, presente no edital, que impediu a participação de outras empresas de menor porte na concorrência.
Uma carta foi apresentada em 27 de dezembro de 2012, mas segundo o parecer da auditoria, tratava-se de "simples relato do projeto proposto na licitação, com o plano de exploração comercial da área", sem garantia financeira. Outra carta foi apresentada em 21 de junho de 2013, informando que dois fundos de investimento seriam responsáveis por captar até R$ 750 milhões. Porém, na avaliação do relatório, o documento "não comprovou financiamento com instituição financeira que possua patrimônio líquido comprovado de R$ 400 milhões, ou operação financeira que possa ser considerada equivalente".
Por considerar que a Cais Mauá do Brasil não cumpriu os prazos exigidos, o texto dos auditores reproduz trecho do contrato de arrendamento segundo o qual fica "facultado à Arrendante, SPH, proceder à declaração de caducidade do Contrato".
Mudança na composição acionária
Para vencer a licitação do Cais Mauá, as empresas que formam o consórcio vencedor tiveram de demonstrar que cumpriam várias exigências de habilitação e qualificação previstas no edital a fim de garantir que são empresas sólidas e com condição de realizar o serviço nos termos exigidos. Porém, das cinco empresas vencedoras da concorrência (Contern, GIS, Iberosport, Solo e Spim), três abandonaram o empreendimento (Iberosport, GIS e Spim), sendo substituídas por NSG e Fundo de Investimento em Participações Porto Cais Mauá, alterando a formatação do consórcio.
A auditoria aponta duas irregularidades nessa alteração. Uma delas é que a cláusula 5.1 do contrato de arrendamento exige que qualquer mudança na composição societária seja comunicada e autorizada com antecedência - o que não foi feito. A outra é de que "não há como verificar se a nova estrutura da empresa atende às exigências de habilitação e de qualificação econômico-financeira estabelecidas na licitação". Ou seja, as empresas que venceram a licitação não são as mesmas atualmente incumbidas do projeto.
Descumprimento de prazos
A auditoria aponta que, conforme o item IV do Anexo 1 da licitação, todos os projetos executivos deveriam ter sido elaborados em um prazo de 120 dias (até 6 de julho de 2012), o que não foi atendido. O texto informa ainda que "até o final do período de auditoria, não haviam sido iniciadas as obras, descumprindo-se totalmente o cronograma apresentado na concorrência".
Em 5 de março de 2013, a empresa entregou um conjunto de plantas para a área. Mas, segundo um parecer de fiscalização citado pelo relatório do TCE, "sem assinatura do responsável técnico, sem ART (Anotação de Responsabilidade Técnica) e tampouco memorial descritivo (...). A fiscalização também relatou que não havia sido entregue nenhum comprovante de tramitação dos projetos na esfera municipal". Recentemente, após essa manifestação, foi apresentado o Estudo de Impacto Ambiental (Eia-Rima) da obra, um dos passos mais importantes para seu licenciamento.
Em uma resposta apresentada à SPH e incluída no relatório, a Cais Mauá do Brasil argumentou que só poderia concluir os projetos executivos após a emissão do licenciamento ambiental e de viabilidade urbanística, já que o município poderia fazer exigências ao longo da tramitação que alterariam os projetos.
Falta de obras e manutenção
O Termo de Início de Obras da revitalização do cais foi assinado em 6 de novembro de 2013. O cronograma apresentado pela empresa para a chamada Fase 1 previa recuperação dos armazéns, entrega dos espaços revitalizados para os lojistas, pavimentação e sinalização, entre outras atividades, até junho de 2014. A equipe de auditoria constatou que "apenas parte das demolições previstas na Fase 1 foi executada até o final da auditoria.
O relatório do TCE reproduz, ainda, um ofício do ex-diretor da SPH, Pedro Homero Obelar, afirmando que a falta de manutenção já comprometia a estrutura dos armazéns: "Não estão ocorrendo atividades por parte da empresa no que tange à revitalização do Cais Mauá, sendo que, com isto, ocorre a rápida e injustificável deterioração das históricas instalações portuárias, que remontam do início do século passado (ano de 1910), uma vez que a empresa não cumpre as suas obrigações contratuais".
O QUE DIZ A CAIS MAUÁ DO BRASIL
- Procurado por Zero Hora, o consórcio Cais Mauá do Brasil informou por meio de sua assessoria de imprensa que não se manifestaria a respeito das irregularidades apontadas pelo fato de não ter sido notificado oficialmente.
- ZH encaminhou, na quinta-feira passada, e-mail ao consórcio com os principais pontos questionados pelo TCE, como a falta de apresentação de garantias financeiras, mudança na composição acionária e o descumprimento de prazos e cronogramas.
- Em setembro, a empresa se manifestou sobre críticas feitas por um grupo contrário aos moldes atuais da revitalização do cais, o movimento Cais Mauá de Todos. Naquela oportunidade, a empresa garantiu que "o contrato de arrendamento da área é regular e está sendo cumprido corretamente".
- Em relação ao atraso do cronograma como um todo, o consórcio havia informado em setembro que "os projetos são apresentados de acordo com a evolução do projeto, cumprindo as normas da legislação". No relatório do TCE, é citado que a Cais Mauá adotou o entendimento de que só precisaria apresentar a Carta de Estruturação Financeira quando eventualmente contratasse um financiamento para tocar a obra. Porém, esse argumento não foi acatado pela auditoria.
O QUE OCORRE A PARTIR DE AGORA
- A inspeção do TCE é um processo em andamento que deverá acompanhar todo o período de realização das obras no cais.
- Um relatório final deverá ser produzido quando o cais estiver revitalizado. Esse relatório será encaminhado para manifestação do Ministério Público de Contas.
- Depois disso, o relatório será julgado pelo Pleno do TCE - o que ainda não tem data para ocorrer.
- Os conselheiros do Tribunal podem confirmar as irregularidades apontadas no relatório ou desconsiderá-las. Caso sejam confirmadas, podem levar a medidas como aplicação de multas ou reprovação das contas do gestor auditado.