Professor titular do Departamento de Sociologia da FFLCH/USP, o sociólogo Brasilio Sallum Jr. lançou em julho o livro O Impeachment de Fernando Collor (Editora 34), no qual reconstitui e analisa os anos de governo de Fernando Collor de Mello (entre 1990 e 1992) e a movimentação política de bastidores que terminou em sua destituição (apesar de sua renúncia). Convidado do Seminário de Ciência Política promovido pela UFRGS, Sallum faz, nesta entrevista, a comparação entre o cenário daquela crise, há mais de duas décadas, e a atual instabilidade nas relações entre governo e Congresso. Para ele, não há elementos para um impeachment de Dilma, mas ela está em crise de autoridade.
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Quais as diferenças e semelhanças entre o clima político na época do impeachment de Collor e na atual crise entre a Câmara e a presidente Dilma?
A questão chave é que naquela época, em 1992, só no final do mandato, nos últimos meses, agosto e setembro, o presidente Collor perdeu autoridade, e existia uma situação específica contra ele, um indício forte que permitia acusá-lo de crime de responsabilidade. Agora a situação é muito diferente porque a presidente, já nos primeiros meses de governo, parece ter perdido muito da sua autoridade. Não autoridade no sentido de poder legal, mas no sentido de ser aceita e conseguir produzir uma agenda política para o futuro. Com isso, as forças políticas que não acreditam que ela consiga governar fazem essas manifestações de vontade de que ela seja retirada da presidência. Mas ainda falta uma acusação que torne isso factível.
Há condições para um impeachment da presidente Dilma?
Não parece haver um indício visível. A única coisa que está na mesa é a acusação lá do Tribunal de Contas sobre as pedaladas fiscais, e é um motivo polêmico. Há uma controvérsia jurídica a respeito do significado daqueles atos do governo. Tem gente que acha que isso foi feito no mandato anterior, então não poderia afetar este, enquanto outros defendem que, como ela continua presidente, deveria ser responsabilizada perdendo este novo mandato. Fora as questões políticas, porque para você aprovar um pedido desses na Câmara dos Deputados é preciso mais de dois terços da casa. A presidente ainda tem uma boa parte da base aliada a apoiá-la, tem uma base sindical, coisa que o Collor não tinha. O tipo de disputa que está se travando hoje é outro. Claro que tem esse elemento comum da falta de autoridade, mas o conjunto das coisas não é parecido. Mesmo as grandes manifestações populares contra o governo estão sendo realizadas agora antes de haver qualquer tipo de procedimento em favor do impeachment. Naquele momento do Collor não, você teve a formação de uma coalizão, teve um conjunto de processos que ocorreram no plano do Congresso e depois é que explodiram as manifestações de apoio. Agora é o contrário: as manifestações de rejeição à presidente vieram antes de as coisas ficarem difíceis no Congresso.
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Mas, ao mesmo tempo, algumas forças começam a se movimentar como que para inviabilizar a permanência da presidente: o presidente da Câmara se declara oposição, Gilmar Mendes leva ao plenário do Supremo uma ação de impugnação de mandato, Michel Temer gradativamente vai se afastando de Dilma como que para se manter uma opção em caso de impeachment...
Há uma potencialidade. Digamos que a cena toda apresenta indícios de que tudo pode se desdobrar dessa maneira, inclusive por responsabilidade da própria presidente, que deixou o vice-presidente solto, praticamente permitiu que se tirasse a articulação política dele em um certo momento. Esse foi um elemento importante na crise, uma espécie de ato temerário do governo. Mas é importante ressaltar que, de todos esses procedimentos, inclusive as apurações da Lava-Jato, nenhum deles coloca em questão as regras democráticas, as regras do Estado de Direito sob as quais vivemos. Pelo menos isso acho bastante positivo. Embora haja pequenos grupos que pedem intervenção militar, são uma minoria, não têm nenhuma relevância no conjunto das coisas. O principal de tudo é que a presidente tem tido enorme dificuldade de dar rumo ao Estado. É essa dificuldade de ela formular uma agenda política que está fertilizando o solo desses movimentos que você sinalizou.
A presidente está sofrendo a hostilidade do Congresso, e simultaneamente, o ministro da Fazenda afirma a necessidade de cortes na área social, que tem sido o coração do governo. A presidente está com dificuldade de afinar a comunicação de sua equipe?
Há uma disputa no interior da área econômica entre o ministro do Planejamento e o da Fazenda. E a presidente está hesitando no que se refere a arbitrar esse conflito. Então uma hora é CPMF, outra hora são cortes, e você tem uma oscilação muito grande nas propostas do governo, o que contribui para reduzir a autoridade da presidente. Espera-se pelo menos uma espécie de diretriz do Executivo, em torno do qual o sistema político do Brasil gira. E quando o presidente perde autoridade, isso desorganiza todo o sistema. Quando ela mesmo não consegue mostrar para onde quer ir, ela própria tem dificuldade de governar.
Até março, o Brasil contava com 61 pedidos de impeachment em 23 anos de democracia - todo presidente já foi alvo de um. Por que tantos pedem a retirada do governante eleito? Falta maturidade à nossa democracia?
È importante que sejam pedidos de aplicação de uma lei, e não pedidos de derrubada do governo. Até 1992, havia tentativas de interromper o governo quebrando as regras. Depois, quando a oposição conseguiu o impeachment de Collor, e é bom lembrar que o núcleo daquela oposição era composto por PMDB e PT, as forças políticas viram que era factível mudar o governo legalmente. Mas, para que isso seja levado adiante, é preciso que haja uma expressiva maioria. Então, quem pede impeachment sabe que às vezes isso aí sequer vai ser levado a votação. Isso faz parte da luta política, e acho que não é uma questão de maturidade da democracia, embora a nossa democracia de fato não seja madura. A nossa dificuldade é que temos um sistema que funciona, mas está encontrando dificuldades para funcionar. Em primeiro lugar porque há uma fragmentação partidária, o que torna muito difícil votar e, especialmente, preservar a maioria. E quando essa fragmentação se liga, como no caso atual, a uma perda de autoridade da presidente, isso torna muito difícil o funcionamento do sistema. A chamada pauta-bomba, a dificuldade de aprovar qualquer coisa, deriva disso. A fragmentação do sistema faz com que os três grandes partidos não detenham cada um nem 40% do Congresso. Para se ter uma ideia, na época do Collor o PMDB tinha cem parlamentares, o PT e o PSDB, 50. Então você tinha uma massa de gente nos grandes partidos que tornava mais fácil estabelecer coalizões. E quando a presidente está em crise de autoridade, fica difícil ela pedir sacrifícios a políticos profissionais que dependem do voto popular daqui a um ano e meio, a três anos e meio.