O PrOA visitou a Fundação de Atendimento Socioeducativo (Fase) para saber o que adolescentes com histórico de infrações pensam sobre o projeto de redução da maioridade penal. Se o olhar de quem está de fora é de medo ou condenação, o olhar de quem está dentro surpreende.
O guri fala com os braços cruzados sobre o moletom cinza, deixando escapar um meio sorriso no canto da boca.
- 95% daqui se cai lá morre lá dentro, eles não são malandros.
Lá e aqui são definições abstratas para dois mundos que Evandro* conhece bem - e que estão no centro de uma das discussões mais candentes do Congresso Nacional.
Seu "aqui" é a Fundação de Atendimento Socioeducativo do Estado (Fase), que abriga adolescentes que cometeram atos infracionais. "Lá" é o Presídio Central, principal porta de entrada para presos com mais de 18 anos no Rio Grande do Sul.
Aos 18 anos, Evandro tem um pé lá e outro cá. Passou oito meses no Central por roubo de carro, mas quando ganhou a liberdade precisou retornar à Fase para pagar uma "bronca de menor", por um assalto cometido aos 12 anos. De sua experiência entre aqui e lá, tirou uma conclusão improvável.
- Os guris aqui sofrem mais do que os bandidos lá - compara o jovem, que conversou com a reportagem do caderno PrOA numa segunda-feira à tarde, na Unidade Carlos Santos, em Porto Alegre.
Foto: Carlos Macedo/Agência RBS
Do lado de cá, na Fase, estão alguns daqueles que 87% da população brasileira quer colocar lá, no presídio - segundo pesquisa do Datafolha, nove em cada 10 brasileiros são favoráveis à redução da maioridade penal. A maioria desses brasileiros não conhece direito nem o lá nem o aqui, mas se assusta com a escalada da violência nacional e acha que, se os daqui forem colocados lá, tudo poderia melhorar. O projeto que prevê a redução da maioridade penal para crimes hediondos, já aprovado em comissão especial da Câmara, será votado pelo plenário nesta terça-feira, dia 30.
Os argumentos de quem vê a discussão pelo lado de dentro nem sempre coincidem com os raciocínios de quem julga de fora. Evandro, por exemplo, diz que é contra a redução da maioridade penal, mas não fala em causa própria. Garante que, se pudesse escolher, preferiria responder pelo que deve no presídio. Não que lá, no Central, fosse um lugar melhor. Lembra do cheiro de esgoto e da profusão de ratos e baratas na cela, onde se empilhavam 10 detentos. Só que estar lá tinha outras compensações: mais de cinco horas de pátio sem obrigações, num universo onde circulam livremente celulares, facões e até geladeiras particulares, que entram no sistema prisional à margem da legislação.
- Não tem monitor lá. A polícia só fica em volta pra não fugir, quem manda lá é nós - resume.
Já na Fase ele vê monitores circulando o tempo todo, até para ir ao banheiro é acompanhado. Todo mundo é obrigado a frequentar a escola. O horário de pátio se limita a duas horas. Por tudo isso, Evandro discorda daqueles que dizem que o sistema de internação é brando demais.
- Prefiro puxar lá no Central do que aqui, lá é mais livre. Aqui parece uma creche - reclama.
A opinião de Evandro não é isolada. No início deste mês, 10 internos da Fase que já completaram 18 anos chegaram a organizar um motim com o objetivo de serem transferidos para o Central. O caso aparentemente inusitado revela camadas de uma realidade apenas superficialmente tocada pelos discursos que cercam a questão.
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Enquanto a maior parte da população acredita que a redução da maioridade penal seria uma forma de reagir a episódios rumorosos, como o caso das adolescentes estupradas e mortas por quatro menores de idade e um adulto em Castelo do Piauí, quem conhece os escaninhos do sistema assegura que esse suposto remédio funcionaria na verdade como um agravante da doença do sistema.
- As pessoas acham que a redução da maioridade vai reduzir a impunidade, mas vai aumentar. Só no Estado hoje temos 1,5 mil presos aguardando vaga no semiaberto, a lotação é tanta que temos fila para prender. E essa situação absurda vai se agravar se isso for aprovado - alerta o juiz Carlos Gross, da 1ª Vara da Infância e da Juventude da Capital.
Aos que dizem que adolescentes ficam impunes pela legislação atual, o juiz responde com um exemplo prático. Se hoje um jovem de 18 anos for apanhado cometendo um roubo em companhia de um adolescente, o que acontece?
- O menor vai para a Fase, recebendo uma medida média de nove meses a um ano e meio. O maior vai responder preso, mas se não tiver antecedentes vai para o semiaberto, e como tem fila de espera, vai ficar solto. Hoje já se dá exatamente o contrário do que pensam, os adolescentes acabam tendo punição maior - argumenta.
Dados do Sistema Integrado de Informações Penitenciárias divulgados nesta semana mostram que, em 15 anos, o número de presos cresceu 161% - enquanto a população aumentou 20%. Os dados fazem do Brasil o detentor da quarta maior população carcerária do mundo, com 607 mil presos. Dois em cada três são negros e metade não frequentou a escola ou tem ensino fundamental incompleto. Para a defensora pública Marta Zanchi, vice-presidente da Associação Nacional dos Defensores Públicos, apostar em políticas que atacassem as causas, como a redução da evasão escolar, seria mais eficiente do que enjaular a todos, como se fosse possível apartar da sociedade as deformações que ela mesma produz.
- Ainda que se encarcere todo mundo dentro do presídio, essas pessoas vão sair um dia. E vão sair como? - questiona.
Juliano*, 16 anos, que está na Fase há oito meses, espera sair diferente. O guri com histórico de roubos de motos vem descobrindo outros talentos. Já fez cursos de informática, costura e agora se aventura pelo mundo da culinária.
- Nunca pensei que eu pudesse fazer essas coisas. Antes, não sabia nem fazer miojo - conta.
Aluno do primeiro ano do Ensino Médio, o interno da unidade Padre Cacique se voluntariou para ser um dos representantes da instituição em discussões sobre a redução da maioridade penal. Em dezembro, vai a Brasília para a 10ª Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente.
- Com essa redução só vai piorar, todo mundo sabe que o presídio é uma escola do crime. Minha primeira carteira assinada eu consegui aqui na Fase. Quando eu sair eu quero mudar, começar tudo de novo - diz, sonhando com um futuro em que "lá" signifique estar em casa, e não numa prisão.
* Os nomes são fictícios para preservar a identidade dos entrevistados, em respeito ao ECA.
"Prender jovens já é o que o Brasil está fazendo"
Menina em seu quarto, na Fase
Foto: Carlos Macedo/Agência RBS
Quando começou a se debruçar sobre os dados do Sistema Integrado de Informações Penitenciárias (Infopen), a socióloga Jacqueline Sinhoretto, professora da Universidade Federal de São Carlos e consultora do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) imaginava encontrar correspondência entre o aumento do número de prisões nos Estados e a redução no índice de homicídios.
Mas os resultados, compilados na publicação Mapa do Encarceramento - Os Jovens do Brasil, lançada no início deste mês pela Secretaria Nacional da Juventude, desconstruíram a expectativa.
- Não existe essa correlação direta. Prender mais como medida isolada não reduz homicídios. O que reduz é uma política articulada com prevenção, atenção ao egresso, investigação dos crimes mais graves, redução da letalidade penal - concluiu, citando os resultados de Pernambuco como uma das exceções positivas.
Depois de seis meses sobre os dados, que indicaram um crescimento de 74% na população carcerária entre 2005 e 2012, a socióloga também reforçou sua convicção de que a redução não atingiria o objetivo esperado.
- Prender jovens já é o que o Brasil está fazendo. Aumentar o número de presos como medida isolada já está comprovado que não reduz a violência, mas aumenta a degradação do sistema carcerário e vai ter um efeito muito negativo para essas pessoas - analisa.
Dos 607 mil presos do país atualmente, 56% têm de 18 a 29 anos. Os números apontam que o crescimento de prisões é focado em um perfil específico: jovens e negros, especialmente. Apesar de o homicídio ser o crime mais preocupante, apenas 12% dos presos do país respondem por ele, enquanto metade dos encarcerados cumpre pena por delitos contra o patrimônio, e um quarto, por tráfico.
Para Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP, a proposta da redução da maioridade penal tem sido vendida como uma tábua de salvação, como se existisse uma solução simples para o problema da violência. Ele observa, porém, que a tendência internacional é rever a ideia de sistemas de aprisionamento em massa, por considerá-los espaços de "network" do crime, onde bandidos ampliam suas redes de contatos e a potencialidade de novos ataques.
- Um caso interessante é esse dos autores do atentado ao Charlie Hebdo. Eles eram criminosos comuns, que foram presos e na prisão fizeram contatos com lideranças da Al-Qaeda. Até que ponto as prisões servem para articular a raiva e a revolta do sistema prisional? - questiona.
Além de afetar o próprio sistema, inchando ainda mais as unidades superlotadas, a possibilidade de prisão de adolescentes a partir de 16 anos também suscita outras questões, como o que aconteceria com outros direitos assegurados no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Em tese, haveria brecha para outras revisões legais.
- A redução (da maioridade penal) pode implicar outras autorizações, como menores de 16 anos dirigirem e beberem (álcool). Mas hoje os acidentes de trânsito são uma das principais causas de mortes. Essa medida populista pode produzir um efeito colateral muito perigoso - adverte Manso.
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Contrário à aprovação do projeto, um conjunto de entidades ligadas à proteção dos direitos da infância lançou o portal Maioridade Penal (maioridadepenal.org.br), que oferece informações detalhadas sobre a tramitação e dados estatísticos. O site mostra, por exemplo, que apenas 3,8% dos crimes e atos infracionais do país foram praticados por adolescentes.
- Se mudar essa lei não vai ter mudança no perfil da violência, mas no futuro desses adolescentes sim. Existe um olhar muito equivocado de que eles não têm mais jeito, mas não se está se investindo para que seja diferente - critica a administradora executiva da Fundação Abrinq, Heloísa Oliveira.