* Francisco Marshall é Historiador, Arqueólogo e professor da UFRGS. Escreve mensalmente no caderno PrOA.
Platão pertencia a uma família de bem nascidos (eupátridas), herdeiro e líder de um grupo que atacava sem cessar o regime democrático. Quando Atenas perdeu a guerra do Peloponeso (404 a.C.), a cólera inflamou-se e supurou; ainda no vácuo do golpe oligárquico de 411 a.C., implantou-se um regime tirânico que em 13 meses quase arquivou aquela experiência política precursora. No furor vingativo da tirania dos trinta, mais de 1,5 mil democratas foram assassinados a mando de Crítias, pupilo de Sócrates; Terâmenes, um moderado, foi condenado a beber cicuta. A condenação de Sócrates, em 399 a.C., foi uma resposta a este grupo de conspiradores, eliminando seu vaidoso guru. A obra de Platão, doravante, tornou-se uma panfletagem rancorosa contra o regime que aceitava o debate e a troca de opiniões como caminho para a decisão política, dava autoridade a gente do povo sem educação especial e promovia alternância no poder, sem privilégios aos aristocratas.
No livro República, Platão defende o rei filósofo, um tipo humano especial cuja máxima competência intelectual habilitaria ao poder monárquico, para o bem comum. Os atenienses não deram ouvidos ao filósofo e sua tentativa de chegar ao poder (ou influenciá-lo decisivamente) na corte de Dionísio, tirano em Siracusa e tio de um aluno seu na Academia, quase lhe custou a vida. A humanidade pagou e paga caro por este erro político de um dos maiores filósofos de todos os tempos. Regimes autocráticos ganharam poderoso arrimo ideológico, e não estamos falando de um imperador estoico, como Marco Aurélio (121 - 180) ou de déspotas esclarecidos, como o rei da Prússia Frederico, o Grande (1712 - 1786), mas de outros narcisos com cetro, caneta ou armas, que se julgam acima da ralé e aptos para dedicar-se ao bem público, desde que com poder exclusivo.
Para piorar, no livro 10 desta mesma obra, originalmente chamada Politeia (constituição, em grego clássico), o pensador-legislador proscreve os artistas da pólis ideal, acusados de charlatanismo: enganam crianças com suas falsas verdades, três graus distantes da realidade. Caetano Veloso, exilado em 1969, e todos os artistas perseguidos por regimes de força, e provavelmente você, leitor(a) informado(a), sabem do que estamos falando. Intolerância cultural, que ora vemos dirigida até mesmo a um notável educador brasileiro. Na mesma linha, a alegoria da caverna, no livro sete desta obra, deve ser lida não só como bela metáfora da ascensão pelo conhecimento, mas como parte do mito político do rei-filósofo, e suas adversidades.
Ironicamente, a mesma acusação que faz Platão proscrever artistas (enganar com imagens) hoje nos ajuda a indiciar perigoso inimigo da democracia. Nesta, somos acossados por publicitários sem escrúpulos, os marqueteiros, que com vinhetas e imagens edulcoradas tratam de ocultar a política e vender gato por lebre para a massa iludida (ricos e pobres). São veneno terrível, xamãs da demagogia midiática, com a desvantagem de que, ao contrário da demagogia populista, esta possui nenhum conteúdo social ou político, apenas enganação eficiente. Parte importante dos males que vivemos vem da ação destes ladinos.
Se a tal reforma política (quimera ambígua) garantir recursos para marqueteiros, continuaremos penando. Pior, se pagarmos mais ilusão com dinheiro público, será novo estágio de nossa insensatez dialética. Face a isto, por ora, melhor seria financiamento nulo e despesa nula, com uso de recursos de comunicação digitais e isonômicos, sem sujeira nas ruas e sentidos, sem fantasia, apenas informação política objetiva. Ilhas digitais em lugares ora desatendidos poderiam ser financiadas com a economia de recursos, e estenderiam os serviços de cidadania, informação e cultura. Com a asfixia deste vírus maligno e o solapamento do populismo midiático, ganharíamos tempo e inteligência em alto grau, e os marqueteiros teriam ócio de sobra para ler Aristóteles ou dar outro fim ao seu genial talento criativo, a bem da democracia.
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