*Tradutor e Jornalista
Aos 73 anos de idade, Sérgio Sant'Anna tem lugar assegurado em qualquer lista de grandes escritores brasileiros. Autor de obra extensa na qual predominam as narrativas curtas (chamá-las de "contos" seria ir contra a sua natureza, avessa a classificações), o carioca viu dois livros seus chegarem às livrarias recentemente:
O Homem-Mulher, coletânea composta por 17 textos inéditos, e uma reedição daquele que talvez seja o seu título mais celebrado, O Concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro. Juntos, os lançamentos ajudam a situar a importância do autor no panorama da literatura brasileira.
Nunca é fácil escrever a respeito da obra de Sant'Anna: seu melhor comentarista é ele mesmo, algo que fica bastante evidente nas narrativas de O Concerto... Publicada originalmente em 1982, a obra é marcada por um característico uso da metalinguagem - literalmente desde a primeira linha. Uma Página em Branco, o texto de abertura, é uma reflexão que destrincha a primeira frase para debater as possibilidades e as limitações inerentes ao ato da escrita.
Um adendo: nas últimas duas ou três décadas houve uma proliferação de livros que apostam todas as fichas na metalinguagem - com maiores e menores graus de sucesso. Isso acabou dando origem a um tipo de obra que alguns, não sem um sorriso cínico e tom de voz desdenhoso, convencionaram chamar de "livros de escritores", ou seja, obras tão preocupadas em discutir a forma, a linguagem e o ofício do escritor que acabam não interessando a ninguém além deles próprios.
Esse não é o caso de Sant'Anna. Em suas obras, e sobretudo neste O Concerto..., a metalinguagem surge sempre como meio, e nunca como fim. Ela aparece como estratégia de busca pela verdade, uma perspectiva de viés realista capaz de legitimar os fatos narrados ao expor as limitações do formato em que são apresentados. É isso que torna Sant'Anna tão importante no cenário literário nacional: sua obra não se vincula imediatamente a nenhuma escola ou tendência, constituindo-se a partir de uma abordagem totalmente sui generis.
Em nenhum outro livro do autor essa estratégia é tão bem executada quanto em O Concerto, e talvez seja isso que o torne tão emblemático. Além de O Submarino Alemão, espécie de ensaio literário sobre a psicanálise, e Cenários, um conto aparentemente sem enredo, mas que engloba tantos outros contos possíveis, o ponto alto de O Concerto... é o texto que lhe empresta o nome. Composta por fragmentos justapostos de maneira um tanto cinematográfica, a narrativa acompanha a saga de João Gilberto desde sua partida do aeroporto de Nova York, onde recebe de presente um pássaro invisível do músico John Cage, até a sua desistência de se apresentar na casa de show Canecão devido a problemas de som. O conto é uma reflexão sobre a importância do silêncio e da não enunciação na música e na literatura. Os personagens vão sendo construídos através de diálogos soltos, jamais descritos ou caracterizados. O narrador, em vez de preencher as lacunas, limita-se a apresentar os problemas com que depara na construção do texto. Esse recurso, que à primeira vista poderia ser interpretado (equivocadamente) como um mecanismo que subestima o leitor, serve para potencializar o ato interpretativo.
O mesmo artifício aparece também em alguns contos de O Homem-Mulher, mas desta vez de maneira mais esparsa. Muito menos coeso do que O Concerto..., o conjunto revisita os principais eixos já trabalhados pelo autor. Há écfrases (descrições escritas de obras não literárias) memoráveis, como em Este Quadro e O Torcedor e a Bailarina. Há crônicas mais (Eles Dois) e menos (Lencinhos) felizes. E há breves discussões sobre o conto como forma, como O Conto Maldito e O Conto Benfazejo.
Mas os momentos mais interessantes de O Homem-Mulher não estão em nenhum destes. Um deles é As Antenas da Raça, conto breve de humor ácido e toques absurdos. Os outros são O Homem-Mulher I e II, que abrem e fecham o volume. Na primeira parte, de apenas cinco páginas, é narrada a história de um crossdresser que busca satisfação erótica durante o carnaval. Em princípio, poderia passar despercebido pelo leitor, não fosse o seu resgate no fim do livro. A execução da segunda parte é feita com maestria: nela, Sérgio Sant'Anna retoma do princípio a história do crossdresser e a expande por caminhos totalmente improváveis. Após um estranhamento inicial, o leitor se familiariza com a luta de Adamastor Magalhães (é esse o nome do personagem) para constituir uma carreira no teatro - esforço que leva até as últimas consequências. Caracteristicamente, emerge da narrativa a problematização dos limites entre obra e vida, ficção e realidade, e mais uma vez o leitor depara com um desfecho inesperado. Após tantos anos e tantos livros, a literatura de Sérgio Sant'Anna tem mais força justamente nos momentos em que continua a surpreender.