Seja você entusiasta ou crítico dos protestos que se armam neste domingo, há de convir que o convite à reflexão é irrecusável. Justo no dia em que no Brasil se completam 30 anos da redemocratização - período mais longo da nossa história sem a opressão de regimes arbitrários -, uma parcela do país exige nas ruas o impeachment da presidente.
- Por um lado, é sinal de uma conquista: o brasileiro hoje tem consciência do seu direito de se manifestar contra ou a favor do que bem entender. E tem usado esse direito com frequência inédita - elogia o cientista político Fernando Guarnieri, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
- Por outro lado, por pior que esteja o atual governo, às vezes ainda parece faltar clareza de que ganhar e perder faz parte do jogo democrático - pondera Luiz Antonio Dias, doutor em História Social e professor da PUC-SP.
Essa ambivalência entre o amadurecimento e a instabilidade resume a trajetória do Brasil desde a nublada manhã de 15 de março de 1985, quando o vice-presidente José Sarney tomou posse em uma cerimônia tensa no Congresso. Era o retorno do país às liberdades democráticas, mas temia-se que os militares usassem a ausência de Tancredo Neves, presidente eleito internado às pressas na noite anterior, como pretexto para um novo golpe.
Tancredo morreu um mês depois, deixando Sarney como o primeiro presidente civil após o golpe de 1964, mas não houve atropelo institucional. Ainda assim, prolongou-se nos anos seguintes uma apreensão recorrente no imaginário brasileiro: bastaria um escorregão para os militares subirem de novo a rampa do Planalto e arrancarem de lá o chefe do Executivo.
- Para consolidar esse ambiente democrático, foi fundamental a subordinação das Forças Armadas às autoridades civis. Acabaram-se aqueles levantes militares comuns desde 1946 - afirma José Álvaro Moisés, cientista político que coordena o Grupo de Pesquisa Qualidade da Democracia, do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP).
VÍDEO - Protesto por impeachment: conquista ou imaturidade?
De lá para cá, em especial depois da Constituição de 1988, houve um boom na autonomia de instituições antes engolidas pelo governo - da Polícia Federal ao Ministério Público, da Justiça comum à Justiça Eleitoral, da imprensa livre à sociedade civil -, alçando o país a um patamar respeitável entre as democracias da América Latina.
Em síntese, é boa a saúde democrática. Mas ainda temos infecções graves.
- Há uma série de problemas, e a corrupção é reflexo deles, mas, em comparação a outros países de democracia recente, o Brasil apresenta um desenvolvimento gradativo e continuado - avalia o americano Peter Hakim, presidente emérito do Inter-American Dialogue, instituto de análise política sediado em Washington. - Veja, por exemplo, como o governo brasileiro lidará com os protestos deste domingo e compare com o que ocorre na Venezuela, onde dezenas de manifestantes já foram mortos.
Outro ponto lembrado pelo historiador Luiz Antonio Dias, da PUC-SP, é que, na ditadura, o Supremo Tribunal Federal atravessou décadas com ministros indicados pelo mesmo regime. Com a alternância de governos, o Judiciário ganhou diversidade e, por consequência, independência.
- Se há 30 anos alguém apostasse na condenação de um deputado, de um juiz ou de um governante, perderia fácil. Hoje, não é bem assim - diz Luiz Antonio.
- Ao mesmo tempo, a corrupção ainda é aceita como parte do sistema. Quando você olha os presos do mensalão erguendo os punhos em sinal de resistência, parece claro que, na cabeça deles, não houve uma violação do Estado de Direito - interpreta Peter Hakim.
E assim chegamos ao que talvez seja o principal atraso democrático do país. Se a roubalheira se repete às catadupas no parlamento, na esplanada e nas estatais, não se trata apenas de um sério distúrbio ético, mas também de uma falha inegável na instituição responsável por fiscalizar o abuso de poder.
- Essa é uma das funções mais importantes do Poder Legislativo. A corrupção é uma prova viva de que o parlamento, além de fracassar na vigilância do Executivo, não consegue fazer a ligação da sociedade e de seus interesses com o sistema político - diz o professor da USP José Álvaro Moisés.
Aliás, falando em ligação da sociedade, alguma vez você enviou e-mail para um parlamentar em quem votou? Nem para o vereador da sua cidade? E, se algum dia visitou Brasília, não aproveitou para conhecer o gabinete de quem teve a honra do seu voto?
- Há uma frase muito popular aqui nos Estados Unidos: "Manda uma carta para o seu congressista". O cidadão escreve e geralmente obtém resposta. - conta Peter Hakim. - Quando americanos de outros cantos do país vêm a Washington fazer turismo, é comum marcarem cinco minutos com o seu parlamentar. Não é só uma questão de consciência política: o americano tem mais canais de acesso ao Congresso, é mais estimulado a fazer isso.
Estímulo que começa pela identificação com os partidos. Não há como comparar nosso jovem sistema com uma democracia com mais de dois séculos, como é o caso da americana, mas nunca as legendas políticas do Brasil estiveram tão distantes do cidadão - e vice-versa.
- Mas que animação pode ter um brasileiro para conhecer um partido de perto? São agremiações muito fechadas, com donos que mandam e desmandam. Em países como os Estados Unidos, a democracia começa dentro das siglas: os eleitores escolhem quem vai concorrer à eleição. No Brasil, é um grupinho pequeno que escolhe em quem poderemos votar - analisa o cientista político Fernando Guarnieri, da Uerj.
Professor de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Alvaro Bianchi lembra que essa baixa participação nas legendas desestimula o eleitor a contribuir financeiramente com as campanhas - modelo que, na opinião dele, seria o ideal para a reforma política cada vez mais necessária:
- Boa parte dos candidatos nem recorre aos cidadãos, porque tem fontes seguras de financiamento nas grandes corporações. O resultado, nós sabemos: troca de favores entre empresas e deputados.
Vamos à última crítica, e depois voltamos para o que há de bom. Lá em 1985, quando Sarney assumia o lugar de Tancredo, não havia uma única mulher entre os ministros - hoje, Dilma Rousseff tem meia dúzia entre 39. Até pode-se relevar esse desequilíbrio no Poder Executivo, mas, no Congresso, diz o cientista político José Álvaro Moisés, não tem desculpa:
- Ora, se o parlamento pressupõe a representação de todos, não tem cabimento um país no qual as mulheres correspondem a 51% da população ter um Congresso com apenas 10% de representação feminina. É uma distorção que precisa ser corrigida, bem como a representação dos afrodescendentes.
Mas nem tudo é desastre no parlamento. Ao contrário do que alguns acadêmicos esperavam logo após a redemocratização, não houve uma paralisia decisória com o sistema aprovado na Constituição: mesmo com o pluripartidarismo, os presidentes conseguiram aprovar conquistas como o Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), a reforma da Previdência, a Lei de Responsabilidade Fiscal, o fortalecimento do Sistema Único de Saúde, uma série de legislações anticorrupção
- E a Lei da Ficha Limpa só foi possível por conta de uma inovação da Constituição de 1988, que previu leis de iniciativa popular. Só em um regime democrático isso é possível - ressalta o brasilianista Matthew Taylor, da American University, de Washington.
Ou seja, este domingo será tenso, mas nada perto daquele 15 de março de 1985. Há motivos para comemorar. E para protestar também.
* Colaborou Letícia Duarte
Jornada republicana
Ao longo de 30 anos, a Nova República conquistou estabilidade, modernizou-se, enfrentou e superou crises, mas ainda não conseguiu levar a cabo a sempre adiada reforma política.
TRANSIÇÃO
Foto: Jair Cardoso/EBN
Após 21 anos de governos militares, o fim da ditadura foi consolidado com a eleição do civil Tancredo Neves como presidente do Brasil - em votação indireta realizada pelo Congresso em 15 de janeiro de 1985. O futuro presidente foi internado na véspera da posse, e quem assumiu foi o vice, José Sarney, em 15 de março. Tancredo morreria em 21 de abril
MONARQUIA OU REPÚBLICA?
Em 1993, os brasileiros foram às urnas para escolher entre Monarquia ou República, Parlamentarismo ou Presidencialismo. O plebiscito consolidou as formas atuais de governo. A República foi mantida com 66,26% dos votos. O presidencialismo recebeu 55,6% dos votos, e o parlamentarismo, 14,7% (quase 30% dos votos foram nulos).
CONSTITUIÇÃO CIDADÃ
Foto: Arquivo ABr
Formada em 1987, a Assembleia Nacional Constituinte elaborou a nova constituição democrática, concluída em 1988. Apelidada de "cidadã", por ampliar direitos da população, a lei assegurou conquistas como direito de voto aos analfabetos, direito à greve e à liberdade sindical. A Constituição também assegurou autonomia do Ministério Público, com a missão de "defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis".
ELEIÇÕES DIRETAS
Foto: Nico Esteves, Agência RBS
A primeira eleição com voto direto após a redemocratização foi realizada em 1990. Fernando Collor (PRN) venceu Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e assumiu a presidência
IMPEACHMENT
Foto: Daniel Conzi, Agência RBS
Num cenário de revelação de escândalos de corrupção, manifestações populares pedindo sua saída e uma CPI aberta no Congresso para investigar as ligações do presidente com transações feitas pelo seu tesoureiro de campanha, Collor sofreu impeachment, em 1992, e renunciou para evitar a perda de direitos políticos. O vice, Itamar Franco, assumiu.
FICHA LIMPA
Foto: Valter Campanato, Agência Brasil
Com 1,6 milhão de assinaturas, a Ficha Limpa foi um projeto de iniciativa popular que se tornou lei, com o objetivo de aumentar a idoneidade dos candidatos. Sancionada em 2010, a legislação torna inelegível por oito anos um candidato que tiver o mandato cassado, renunciar para evitar a cassação ou for condenado por decisão de órgão colegiado (com mais de um juiz), mesmo que ainda exista a possibilidade de recursos.
POLÍTICOS JULGADOS
Foto: José Cruz, Agência Brasil
Em 2012, todas as atenções se voltaram ao Supremo Tribunal Federal (STF), então presidido por Joaquim Barbosa (à esquerda), para o julgamento do mensalão do PT. O resultado foi um feito inédito: pela primeira vez, políticos de grande calibre foram parar na cadeia
O POVO NA RUA
Foto: Ricardo Duarte, Agência RBS
Rompendo a tradição de passividade política, os brasileiros recuperaram sua capacidade de engajamento social e inundaram as ruas em 2013, com manifestações que começaram contra o preço da passagem de ônibus e agruparam diferentes bandeiras. A presença da população nas ruas contribuiu para a rejeição pela Câmara da Proposta de Emenda Constitucional que pretendia limitar o poder de investigação do Ministério Público, a PEC 37
CORRUPTORES PUNIDOS
Foto: Evaristo Sá, AFP
A luta contra a impunidade segue atualmente com a Operação Lava-Jato, que levou para trás das grades, de forma inédita, corruptores de grandes empresas, por envolvimento na corrupção da Petrobras. A lista enviada pelo procurador-geral da República Rodrigo Janot (acima) ao Supremo Tribunal Federal, com pedidos de inquérito, abarca 54 nomes, incluindo os presidentes da Câmara e do Senado. E os protestos contra e a favor do governo continuam dividindo a população, em protestos nas redes e nas ruas.