* Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve quinzenalmente no caderno PrOA
Em dois mil e quinhentos anos de filosofia (pelo menos, no Ocidente), tivemos dois nomes condenados por corrupção. Um deles é uma glória da filosofia, talvez sua maior glória: Sócrates, que morreu em 399 antes de Cristo. O outro é um grande pensador, um dos inaugurais da modernidade, mas que respeitamos mais por sua contribuição à teoria do conhecimento e às ciências do que à ética ou às disciplinas que lidam com os valores: Francis Bacon, que faleceu em 1626.
Sócrates foi condenado à morte em Atenas - o único dos grandes filósofos a padecer essa pena - por corromper a juventude, ao ensiná-la a desacreditar dos deuses. Tudo nessa história é carregado de significação. O que chamamos de filosofia era novo, tinha um século ou dois. Tal foi a importância de Sócrates que damos aos que o precederam o nome de "pré-socráticos". E Sócrates nada escreveu (uma pegadinha em vestibulares já foi: "que obras você leu de Sócrates?" e a pior resposta, "todas"). Foi filósofo porque foi professor. Em vez de ditar conteúdos, ia perguntando a seu interlocutor o que este pensava disso ou daquilo, e contestando as respostas, até que o próprio parceiro chegava a conclusões. Era tão democrático seu modo de ensinar que até escravos aprendiam com ele.
A cidade de Atenas não entendeu o que dizia Sócrates. Não conseguiu compreender que ele não pregava nada, apenas fazia pensar. Nem entendeu que duvidar, questionar, perguntar são as formas melhores de aprender. Preferiu, tosca e tolamente, afirmar que ele ensinava (um erro) os jovens a descrer dos deuses (outro erro), pretendendo desta forma acabar com a moral e a vida cívica (terceiro erro). Daí, a pena de morte. Daí, esse início perigoso e honroso para a filosofia.
Que não seguiu o caminho socrático. Todos os filósofos importantes que se seguiram escreveram obras. Poucos foram tão longe quanto ele no questionamento - talvez Descartes, com a dúvida metódica. Só que não: a dúvida cartesiana tende ao monólogo, enquanto o que Sócrates fazia era dialogar. Nenhum filósofo foi tão professor quanto ele. Ah que pena não ter assistido a seus diálogos (que ninguém diga "aulas").
Mas fica aí a ideia de corrupção para os atenienses e os romanos: era a degradação das virtudes que mantinham o laço social. Corrupção é degradação. Um tecido social bem atado, que remontava aos deuses, se via esgarçado se as mulheres se emancipavam, se o luxo tomava conta da cidade, se a dominação patriarcal era contestada - e também, esta a parte da filosofia nisso tudo, se as verdades pregadas fossem postas em dúvida.
Talvez seja essa bendita corrupção socrática o cerne da filosofia. Um trabalho de formiga, que jamais faz apologia, só contesta. A ponto de soar insuportável. Por que problematizar o óbvio? Por que complicar as coisas? Mas a filosofia nunca pode ser elogio dos poderosos.
Sócrates não deixou lugar para Bacon, que fica para a próxima coluna.
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