Com a extraordinária reação à acidez dos cartuns e caricaturas do semanário francês Charlie Hebdo, a solução mais rápida e indolor para a surpresa e para o luto é afirmar, simplesmente, que rir de deus no Ocidente é diametralmente diferente de fazê-lo no Oriente.
Mas, mais do que transformar em batalha entre hemisférios a morte de 12 pessoas, entre elas profissionais da sátira mundialmente reconhecidos, deve-se, primeiro, entender quais aspectos políticos e religiosos da sátira gerariam uma resposta tão violenta.
Imprensa mundial condena atentado ao Charlie Hebdo
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Especialista na intersecção das sociologias da religião, da mídia, da cultura, do conhecimento e do humor, o professor David Feltmate (foto), da Auburn University, no Estado americano do Alabama, afirma que se deve afastar a hipótese de um choque de civilizações para explicar o caso:
- Esses incidentes são muito raros, principalmente dado o volume abissal de caricaturas pejorativas em todas as mídias. Em vez de pensarmos nisso em uma questão Oriente versus Ocidente, precisamos, antes, pensar nesse incidente como algo provocado por pessoas dispostas a usar violência para conseguir o que querem.
Revista francesa já havia sido alvo de atentados
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Feltmate, que pesquisa a política cultural da representação religiosa em animações como Os Simpsons, South Park e Family Guy, destaca que, ainda que a cultura oral islâmica proíba representações visuais de Maomé, tudo indica que o caso seja tensão política:
- O Charlie Hebdo satiriza muçulmanos. E cristãos. E judeus. É claro que, a cada caricatura ligada à religião, muitas pessoas se sentiram moralmente ofendidas, mas só agora três ou quatro delas, resolveram agir a respeito e responderam desproporcionalmente. E isso é aceitar a provocação da sátira, que brinca com diferenças entre as pessoas, com conflitos na sociedade.
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Em vez de qualificar o atentado à vida da equipe do Charlie Hebdo de uma represália à representação visual de Maomé, como foi feito durante toda a controvérsia envolvendo caricaturas do profeta no jornal dinamarquês Jyllands-Posten em 2005, é necessário considerar o discurso político da sátira aos islâmicos e à sua influência na França:
- Não se pode esquecer que os franceses vivem cercados de muçulmanos. E que o Charlie Hebdo é uma revista esquerdista, que se manifesta sobre assuntos nacionais e mundiais com humor. Não se pode divorciar a política das representações religiosas satíricas. Na hora de julgar, devemos pensar qual o discurso dessas caricaturas sobre os muçulmanos no mundo em vez daquilo que dizem sobre a representação visual de Maomé - reflete Feltmate.
As diferenças entre rir de Jesus e de Maomé
Embora a questão da representação não seja central para entender o atentado, ambas as religiões têm sua maneira de representar - ou não - suas divindades e profetas por meio da sátira. Entenda:
No cristianismo
A história tentou proibir os cristãos de rirem do conteúdo da fé. Retratos satíricos da cristandade, afirma o doutor em teologia François Boespflug, professor da Universidade de Strasbourg, na França, eram tabu até 1792, quando uma charge (claramente monarquista) na revista parisiense The New Calvary mostrou Luís XVI crucificado como mártir, com Maria Antonieta fazendo as vezes de Virgem Maria e a duquesa de Polignac, amiga e companheira da rainha, como Maria Madalena.
Até então, tratava-se apenas de uma apropriação da imagem da crucificação, sem ofensa direta a Jesus.
Durante o período da Restauração na França, entretanto, foram erigidas barreiras contra a caricatura anticristã. O mesmo sucedeu na Bélgica, na Alemanha, na Inglaterra e mesmo nos Estados Unidos: a blasfêmia deixou de ser tratada como ofensa espiritual, mas sim como escândalo público.
- A punição para tal ato não tinha tanto a ver com proteção do dogma, mas sim com a salvaguarda de certa ordem pública, da decência e do respeito pelo sentimento religioso do povo - diz Boespflug.
Já pelos idos de 1850, no calor da obra de Karl Marx e da publicação de obras como A Origem das Espécies, de Charles Darwin e do Catecismo Positivista de Auguste Comte, a relação do homem cristão com elementos extra-humanos (Deus entre eles) mudou. E, com isso, a partir de 1870 até a década de 1910, se observou uma explosão de revistas satíricas por toda a Europa. Nessa nova imprensa, toda a cristandade era colocada no centro da comédia: a Bíblia, os 10 mandamentos, os dogmas, sacramentos... e logo Deus virou alvo de piadas.
A primeira imagem "anti-Deus" registrada figurou na revista La Calotte, em 1871. Paul Klenck assinava uma caricatura de Deus à guisa de um velho filósofo, de óculos no nariz, barba amarelada por nicotina e cerveja e bolsos cheios de ações e títulos ferroviários.
Embora, depois dessa quebra de paradigmas, os diretores do La Calotte tenham passado um par de meses na prisão (por uma charge que mostrava a Virgem Maria tricotando meias, observada por um perplexo José), o movimento não podia mais ser contido. Praticamente todas as cenas da vida de Jesus e de seus apóstolos, aposta Boespflug, já foram reinterpretadas em charges em algum momento.
Ainda que alguns Estados europeus ainda estipulem punição para o crime de sacrilégio e uma seção do código penal do Estado da Alsácia-Mosela (antiga Alsácia-Lorena), nunca aplicada mas jamais abrogada, pune com três anos de prisão aquele que ultraje a figura de Deus.
A separação de Igreja e Estado só formalizou a liberdade para se fazer piada com a religião. E hoje, nem aparições de Jesus defecando sobre a cabeça de George W. Bush em South Park não provocam tanto estardalhaço:
- Ainda hoje, a linha que separa o tolerável do tabu é constantemente redesenhada. E talvez o maior dos agentes dessa mudança constante, na França, seja a equipe do Charlie Hebdo, por cujo trabalho continuamos a torcer - diz Boespflug.
No islamismo
O Alcorão contém apenas uma referência geral sobre a idolatria de ícones: é "um erro manifesto". Mas o livro sagrado jamais se refere especificamente a representações visuais do profeta Maomé. As antigas tradições orais, chamadas de hadith, citam Alá como dizendo que é "injusto tentar criar algo similar à Minha criação". Outra hadith diz que "todos os pintores que o retratarem arderão no fogo do inferno". Por isso, o islã jamais acolheu a pintura como ode á religião como o fizeram o Budismo e o Cristianismo. A imagem mais comum de Maomé não é a de um rosto, nem de um corpo, mas de um símbolo caligráfico.
Estudiosos do Islã se dividem sobre se é ou não permissível representar o profeta, embora, nos últimos anos, as controvérsias tenham sido ligadas a representações desrespeitosas ou jocosas:
- Não temos como saber se charges positivas sobre Maomé teriam o mesmo efeito ultrajante nos extremistas - diz David Feltmate, da Auburn University.
Apesar do veto à representação do profeta, imagens dele não são incomuns em um país: o Irã. Os xiitas iranianos são mais flexíveis e tolerantes neste ponto do que os sunitas ortodoxos, tanto que, no país, é possível encontrar pôsteres e cartões postais com o rosto de Maomé à venda.