"Tenha certeza de que sou um homem muito mais determinado. Se antes não era ainda um revolucionário, hoje o sou. Temos uma missão a cumprir. E, portanto, estamos sendo provados pela história."
Uma carta endereçada a Yara Vargas, neta do presidente Getúlio Vargas, logo nas primeiras semanas de exílio mostra o mais notório adversário da ditadura militar, Leonel Brizola, em intensa trama para tentar retornar o mais breve possível ao país.
ZH leu a carta em 2005, quando a família permitiu que a reportagem tivesse acesso aos arquivos, com exclusividade, que o líder trabalhista guardou ao longo da vida, espalhado por três residências — a de Montevidéu, no Uruguai, e as de Copacabana e Santa Teresa, no Rio de Janeiro. Composto por documentos, cartas, fotos, diplomas, objetos, jornais, revistas, livros e fitas, o acervo contempla praticamente todas as fases da vida pública e privada do ex-governador. Na época, foi publicada a série "O Baú de Brizola".
Obrigado a fugir do Brasil cerca de um mês depois do golpe de 31 de março de 1964, Brizola previa para logo uma reação popular ao novo regime. Brizola pedia na carta à Yara Vargas:
"Precisamos quebrar o gelo e o ambiente de temor e de intimidação entre os companheiros. Precisamos aqui de informações selecionadas, concretas, conferidas. Conclame um grupo categorizado e altamente responsável para isso. Mande relatórios compactos sobre o assunto."
Enquanto os banidos do Brasil no Uruguai criavam em 22 de setembro de 1964 (na época já eram cerca de 150 abrigados no país vizinho) a Organização dos Exilados Brasileiros no Uruguai, Brizola tentava clandestinamente organizar um levante armado que invadiria o Rio Grande do Sul. A certeza de que voltaria em breve ao país era tanta que assinou um contrato de aluguel no centro de Montevidéu por apenas seis meses.
Inicialmente foi montado um plano de insurreição armada, que seria deflagrado entre 1965 e 1966 simultaneamente no Rio Grande do Sul, em São Paulo e no Rio de Janeiro, com ataques a quartéis e mobilização popular. A inexperiência e o temor de companheiros e a falta de apoio no meio militar levou ao fracasso a primeira tentativa de liderar uma reação armada.
Já no primeiro ano de exílio Brizola era visto pelo ditador cubano, Fidel Castro, como o homem ideal para comandar uma revolução no Brasil. O líder passou então, com ajuda de Cuba, a organizar uma guerrilha. Com o passar do tempo, as notícias que chegavam do Brasil eram cada vez mais desoladoras, como mostra um relatório com 16 pontos guardado nos arquivos do ex-governador no apartamento de Montevidéu. Dizia o documento:
- "Lamentavelmente, não existe no Brasil atual alguém que possa liderar a causa.
- Os que sobraram são, com raras exceções, individualistas, tímidos, ou melhor, medrosos.
- A bandeira do golpe, levantando o combate à corrupção, calou profundamente no espírito popular.
- Os emissários que vêm do Uruguai devem estar falando demais, pois qualquer assunto é logo do conhecimento de muitos.
- É imprescindível uma organização que unifique todas as forças nacionalistas, sem discriminação partidária.
- Os nacionalistas não se conformam com a inação que houve no momento preciso. Estão convencidos de que foi perdida a segunda grande oportunidade, depois da Legalidade.
- Qualquer ação incerta (de levante ou de guerrilha armada) levará ao fracasso total, por período de duração imprevisível.
Fracassadas todas as tentativas de voltar por meio da luta armada, em 1967 Brizola abandonou de vez as conspirações. Esperou voltar pelas vias legais.
A companheira por trás do banido
A pintura a óleo, que ficava presa à parede da sala de jantar do apartamento de Montevidéu, tem a assinatura do autor adulterada. O quadro foi presenteado a Leonel Brizola quando era governador do Rio Grande do Sul (1959-1963) pelo então senador Guido Mondin, que costumava exercer a veia artística nas horas vagas. Aliado de Brizola na eleição de 1958, quando o PTB se coligou com o conservador PRP, Mondin apoiou a instauração do regime militar em 1964. Neusa Goulart Brizola não o perdoou. O quadro permaneceu com a família no exílio, mas o nome foi desfigurado por ela com um batom.
Se em público mantinha-se discreta, nos bastidores Neusa, mulher com quem o ex-governador foi casado por 43 anos, era atuante. A importância que lhe era conferida fica evidente nas correspondências recebidas de amigos e políticos ligados ao marido. Um punhado de cartas de antes de 1964 e do exílio encontrava-se, em 2005, ainda no apartamento de Pocitos, em Montevidéu, em uma mala, com outras recordações (veja acima).
Depois de exercer papel fundamental em 1961, colocando a estrutura da Varig a serviço de Brizola e da Campanha da Legalidade (movimento para garantir a posse do vice João Goulart na Presidência após a renúncia de Jânio Quadros), o então presidente da empresa, Ruben Berta, passou a se distanciar das posições do governo Goulart (o presidente que acabou sendo derrubado pelo militares em 1964) e a divergir de Brizola. Em agosto de 1962, já no final do mandato do governador, Berta escreveu uma carta a Neusa na qual se explica:
"A água atrás do dique está se acumulando de modo ruidoso, e eu sei que seu marido só procura dar-lhe vazamentos enquanto é tempo, fazendo furos num dique de construção arcaica. Mas tenho outra opinião sobre isso. Acho que furos em diques de terra são sempre perigosos, especialmente quando sua estrutura está sendo minada de modo alarmante por uma inflação voraz que se assemelha à que quase acabou com a Alemanha, em 1923. E quando a enxurrada estiver solta, o equívoco consiste em pensar que alguém de nós sobrará flutuando".
Neusa encontrava nas cartas uma forma de se conectar ao Brasil. Uma delas, escrita pela amiga Alayde Pereira Nunes, logo depois do golpe, diz: "Depois de uma grande luta para permanecermos no Brasil, num sistema de ilegalidade, cansados de enfrentar a reação desumana e violenta que infelizmente domina o nosso querido país, resolveu então o meu esposo (Adão Pereira Nunes) pedir asilo na embaixada do Chile. E aqui estamos, sob esta bandeira, mas com o mesmo espírito de emancipação do Brasil. Sempre com muito carinho me lembro de você, das suas atitudes corajosas, da sua consciência de brasileira, e, se muita coisa mudou, o meu respeito pela sua personalidade é o mesmo."
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Linha do tempo
Dos 82 anos de vida, Leonel Brizola dedicou 60 à carreira pública
- 1922 — Em 22 de janeiro, no povoado de Cruzinha, Carazinho, nasce Leonel de Moura Brizola, filho de José e Oniva.
- 1936 — Deixa Carazinho para tentar a vida em Porto Alegre.
- 1942 — Depois de cursar à noite o colegial supletivo, no Colégio Júlio de Castilhos, e prestar serviço militar na Base Aérea de Canoas, forma-se piloto privado. Ingressa na Faculdade de Engenharia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, cujo curso completa em 1949.
- 1945 — Com um grupo de sindicalistas, funda o primeiro núcleo gaúcho do Partido Trabalhista Brasileiro. No ano seguinte é escolhido presidente da Ala Moça do PTB e passa a liderar comícios, despertando a atenção de Getúlio Vargas.
- 1947 — Elege-se deputado estadual.
- 1950 — Em 1º de março, casa-se com Neusa Goulart, irmã do ex-presidente João Goulart, tendo Getúlio Vargas como padrinho de casamento. Vargas se elegeria presidente em outubro daquele ano.
- 1951 — Concorre à prefeitura de Porto Alegre pelo PTB, mas é derrotado por uma pequena margem de votos pela aliança PSD-UDN-PL.
- 1952 — Assume a Secretaria de Obras Públicas do governo Ernesto Dornelles (PTB).
- 1954 — Quarenta dias depois do suicídio de Vargas, é eleito deputado federal.
- 1955 — É eleito prefeito de Porto Alegre pelo PTB com o slogan Nenhuma Criança sem Escola.
- 1958 — Aos 36 anos, com 670 mil votos, elege-se governador do Rio Grande do Sul.
- 1961 — Com a renúncia de Jânio Quadros em 25 de agosto, lidera um movimento no Rio Grande do Sul, conhecido como Campanha da Legalidade, para garantir a posse do vice-presidente João Goulart, que sofria resistência no meio militar.
- 1962 — Elege-se deputado federal pelo Estado da Guanabara, com a maior votação alcançada até então por um parlamentar no país.
- 1964 — Com o golpe militar, o inimigo número 1 do novo regime é obrigado a seguir os passos de João Goulart e deixar o Brasil.
- 1977 — É expulso do Uruguai pelo governo daquele país. Consegue asilo político nos Estados Unidos.
- 1979 — Depois de 15 anos de exílio, retorna ao país em setembro amparado pela Lei da Anistia.
- 1980 — Tenta resgatar a sigla PTB, que acaba ficando com o grupo da ex- deputada Ivete Vargas. Cria então o PDT.
- 1982 — É eleito primeiro governador do Rio pela via direta desde que Negrão de Lima conquistara o governo da antiga Guanabara, em 1965.
- 1989 — Na primeira eleição direta para presidente da República depois do regime militar, Brizola fica em terceiro lugar. Uma pequena margem de votos o separa do segundo colocado, Luiz Inácio Lula da Silva, que disputou o segundo turno com Fernando Collor.
- 1990 — Pela segunda vez vence a eleição para governador do Rio.
- 1994 — Disputa pela segunda vez a eleição presidencial, ficando em quinto lugar com uma votação inexpressiva, sem paralelo na sua carreira.
- 1998 — Concorre a vice de Lula na eleição presidencial. A dupla perde já no primeiro turno para Fernando Henrique Cardoso, que vence pela segunda vez consecutiva.
- 2000 — Concorre a prefeito do Rio, ficando na quarta colocação.
- 2002 — Candidata-se pela última vez, disputando uma vaga ao Senado pelo Rio. Amarga o sexto lugar. Na disputa à Presidência, apoia no primeiro turno Ciro Gomes (PPS). No segundo turno, vota em Lula. Depois do primeiro ano de governo, rompe com o presidente Lula e passa a fazer-lhe oposição.
- 2004 — Em 21 de junho, depois de ser internado às pressas no Hospital São Lucas, no Rio, com infecção pulmonar, sofre um infarto, morrendo às 21h20min.