A série de reportagens "O Baú de Brizola" foi publicada em Zero Hora em outubro de 2005.
Relatórios com informações de bastidor sobre o governo João Figueiredo — o último do regime militar — serviam de norte para Leonel Brizola nos dois primeiros anos depois do regresso ao Brasil.
Embora continuasse tendo seus passos vigiados pela ditadura que agonizava, o ex-exilado político evitava confrontos diretos com os antigos adversários. Em 1982, na primeira eleição de que participou depois de 20 anos longe das urnas, Brizola foi eleito governador do Rio de Janeiro em meio a um tenso processo de apuração de votos, cercado por suspeitas de fraude. O caso Proconsult, como ficou conhecido, seria uma última tentativa de boicotar a ascensão do trabalhista na política. A denúncia de fraude para favorecer o candidato do regime, Moreira Franco (PDS), nunca ficou comprovada. Brizola acabou sendo diplomado e empossado.
Um relato que chegou a suas mãos em 18 de dezembro de 1982 mostrava a seguinte a avaliação do governo Figueiredo:
"De modo geral o governo está satisfeito (com a eleição de 1982), mesmo nos Estados onde foi derrotado. Citou o exemplo de Minas. Tancredo (Neves) reduz a importância de Ulysses (Guimarães, também do PMDB, mas opositor mais temido que Tancredo)".
O relato é um dos arquivos aos quais ZH teve acesso em 2005, quando a família permitiu que a reportagem revelasse, com exclusividade, o que constava nos arquivos que Brizola guardou ao longo da vida. Composto por documentos, cartas, fotos, diplomas, objetos, jornais, revistas, livros e fitas, o acervo contempla praticamente todas as fases da vida pública e privada do ex-governador. Em 2005, foi publicada a série "O Baú de Brizola".
Em relação à eleição de Brizola, o relatório diz: "Considera o resultado atípico e diz que o governo federal tem um grande interesse em manter boas relações com o governo do Estado, tanto administrativas quanto com vistas à solução de alguns problemas políticos".
Depois de eleito, Brizola procurou imediata aproximação com o governo, mostrando-se disposto a conviver pacificamente com os inimigos do passado. Em 16 de março de 1983, um dia depois de tomar posse, enviou carta a Figueiredo se dispondo a cooperar com todos os setores do governo federal. Sem demonstrar qualquer tipo de rancor em relação ao passado, enviou um telegrama afetuoso ao presidente, desejando melhoras (em 15 de julho de 1983, Figueiredo foi submetido a uma cirurgia do coração em Cleveland, nos Estados Unidos):
"Posso afirmar ao eminente presidente que a população do Rio de Janeiro, desde a sua partida do território nacional, vem acompanhando dia a dia com preocupação e com firme esperança os problemas relacionados com a sua saúde (...). Pessoalmente sempre tive uma convicção profunda de que tudo iria dar certo".
Um ano depois de ter tomado posse, Brizola escreve ao amigo Willy Brandt, líder do Partido Social Democrata Alemão:
"Os nossos caminhos têm sido difíceis e complexos desde que aqui chegamos, de volta do exílio. Mas vamos avançando, firmemente. O nosso partido, que a cada dia assume com mais ênfase o socialismo democrático, tem diante de si uma enorme perspectiva (...)" .
Temperado, mas não domesticado
A segunda fase de Leonel Brizola na política foi marcada por uma relação atribulada com a imprensa, principalmente a partir do segundo mandato como governador do Rio (1991-1994), quando foi bombardeado pelas contestadas ações na área de segurança. A lista de inimigos também foi engrossando.
Os bate-bocas se davam em público, mas também por cartas e fax. Nos arquivos reservados aos adversários, no apartamento do Rio, dezenas de pastas reproduzem esses ataques. Na campanha eleitoral de 1998, o ex-governador e o então presidente do Congresso, senador Antonio Carlos Magalhães (PFL-BA), protagonizaram uma troca de insultos publicamente e por meio de fax.
ACM disse que a vitória de Lula significaria o caos. Brizola, candidato a vice do petista, escreveu ao adversário em 4 de junho:
"Suas declarações não têm outra significação senão uma torpe manifestação golpista, que, a rigor, não deveríamos estanhar, diante da sua recente conversão à democracia. Como homem de boa-fé, cheguei a pensar que V. Excia. tinha se regenerado, mas vejo com pesar que, na hora da verdade, ressurge sua natureza de homem que foi sustentáculo e beneficiário da ditadura, que lhe deu cargos, poder e privilégios".
ACM contra-atacou:
" (...) Quem não tem autoridade moral é V. Excia., que, além de ter destruído o Estado do Rio de Janeiro, fez afirmativas, que possuo em vídeo, ofensivas à moral e à capacidade de seu candidato e chefe Luiz Inácio Lula da Silva. Respeite-se".
Recados da rua
Uma legião de fãs e colaboradores distribuídos por todo o país fazia chegar a Leonel Brizola sugestões de jingles, cartazes e slogans de campanha. Nada era desprezado pelo ex-governador. Após um dia de compromissos externos, Brizola costumava retornar para casa carregando cartões de visitas e bilhetes com mensagens de solidariedade e simpatia, pedidos de emprego ou de favores, currículos e até teses de mestrado.
Depois de tomar seu café na copa, o velho líder sentava-se à mesa da sala de jantar para examinar o que havia colocado nos bolsos ou na pasta. Cada papelzinho, por mais insignificante que fosse, era devidamente guardado em pastas e envelopes catalogados.
Uma antiga amizade
Os contatos feitos na clandestinidade entre Leonel Brizola e Fidel Castro foram retomados nos primeiros anos da redemocratização do Brasil.
Depois de ter ajudado o trabalhista a financiar uma guerrilha armada durante o exílio, o ditador recebeu Brizola em Cuba já na condição de governador do Rio. Um outro contato entre ambosse deu em 1990, na passagem de Fidel pelo Brasil. As fotografias dos encontros fazem parte do acervo de Brizola.
Trechos de cartas
- Carta ao presidente do Partido Social Democrata Alemão, Willy Brandt, em 25 de março de 1983:
"Completo hoje a minha primeira semana no exercício do governo do Estado do Rio de Janeiro. Como o estimado amigo deve imaginar, confrontei-me, já de início, com uma situação bem difícil: os padrões deste Estado, em termos de administração pública, foram levados, pelo antigo governo, a níveis extremamente baixos em matéria de eficiência, sem falar no ambiente de cumplicidades acobertando as mais diversas irregularidades. Quanto às relações com o Governo Central do General Figueiredo, remanescente do regime militar, aos poucos vem se realizando o degelo. A princípio tiveram grande dificuldade em assimilar a minha vitória. Mas agora já trocamos algumas mensagens, inclusive com os próprios ministros militares. A este respeito não tenho maiores preocupações. O interesse público é impessoal, e os impasses e a crise que se abate sobre o país são de tal profundidade, dado o fracasso do regime militar, que o clima de colaboração torna-se imperativo”.
- O senador dos Estados Unidos Edward Kennedy cumprimenta Brizola pela eleição ao governo do Rio em1 982 e agradece o convite para a posse (em março de 1983), explicando que não poderá comparecer:
“Durante todos esses anos nossa amizade foi para mim um prazer, e eu considero sua eleição como governador uma reafirmação do povo brasileiro de apoiar seus compromissos com a democracia e os direitos humanos”.
- Em 16 de março de 1983, um dia depois de assumir o governo do Rio, Brizola mandou uma carta ao presidente João Baptista Figueiredo na tentativa de melhorar as relações com o regime militar:
“(...) Avaliando as altas responsabilidades e os pesados encargos que recaem sobre os ombros de V. Excia, nestes momentos difíceis, venho agora, oficialmente, significar-lhe os nossos melhores propósitos de cooperação em todos os setores que o governo federal julgar necessário, de tal modo que os esforços que V. Excia. vem desenvolvendo para a normalização do país sejam coroados com êxito (...)”.
- Relatório que Brizola pediu em junho de 1984 sobre a vida pregressa de um jornalista que fizera reportagem com críticas a sua atuação no governo do Estado:
“Participou da Juventude Integralista, no tempo de San Thiago Dantas. Conhecid opelas desonestidades através da ‘imprensa marrom’. Escrevia para um jornal cujo dono era o Amaral Neto e era encarregado de falar da honra das pessoas, usando isto para receber dinheiro. Ficou tuberculoso no Rio de Janeiro, sem dinheiro e com fome (...) Curou-se e, então, voltou a beber. Hoje é aposentado do Ministério da Fazenda e, sempre bêbedo, escreve no Estado de São Paulo (sic) por 100 mil por mês. Praticamente de graça”.
- Brizola pede direito de resposta em 21 de dezembro de 1989 a um artigo do então presidente das Organizações Globo, Roberto Marinho, publicado no jornal O Globo:
“É incompreensível, senão pelo ímpeto de ofender, que alguém que tanto se jacta de sua condição de ‘jornalista’, venha afirmar que ‘não é conhecida a origem’ dos bens que possuo. (...) Tudo o que eu e minha mulher possuímos tem uma só origem: a herança por ela recebida há 40 anos. Temos hoje, aliás, muito menos do que então. Quanto ao fato de possuirmos propriedades no Uruguai, recordo ao sr. Marinho que a ditadura que se implantou em 64, com o aplauso e o apoio das Organizações Globo, impediu-me de viver em meu próprio país. Trabalhei duro para manter a minha família, pois não recebi, como tantos aqui ,concessões de canais de rádios e de televisão e muito menos os benefícios oferecidos a empresários cartoriais.(...)"
Continue lendo sobre O Baú do Brizola
- De documentos da época de governador a cartas para a esposa: o tesouro guardado por Leonel Brizola em baú
- O início da vida no Uruguai: cartas narram o sonho de Leonel Brizola de voltar do exílio
- Documentos guardados no baú de Leonel Brizola revelam que ele foi espionado pela ditadura durante 20 anos
- Cartas de Brizola revelam a preparação para o retorno ao Brasil após expulsão do Uruguai e passagem por Estados Unidos e Europa
Linha do tempo
Dos 82 anos de vida, Leonel Brizola dedicou 60 à carreira pública
- 1922 — Em 22 de janeiro, no povoado de Cruzinha, Carazinho, nasce Leonel de Moura Brizola, filho de José e Oniva.
- 1936 — Deixa Carazinho para tentar a vida em Porto Alegre.
- 1942 — Depois de cursar à noite o colegial supletivo, no Colégio Júlio de Castilhos, e prestar serviço militar na Base Aérea de Canoas, forma-se piloto privado. Ingressa na Faculdade de Engenharia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, cujo curso completa em 1949.
- 1945 — Com um grupo de sindicalistas, funda o primeiro núcleo gaúcho do Partido Trabalhista Brasileiro. No ano seguinte é escolhido presidente da Ala Moça do PTB e passa a liderar comícios, despertando a atenção de Getúlio Vargas.
- 1947 — Elege-se deputado estadual.
- 1950 — Em 1º de março, casa-se com Neusa Goulart, irmã do ex-presidente João Goulart, tendo Getúlio Vargas como padrinho de casamento. Vargas se elegeria presidente em outubro daquele ano.
- 1951 — Concorre à prefeitura de Porto Alegre pelo PTB, mas é derrotado por uma pequena margem de votos pela aliança PSD-UDN-PL.
- 1952 — Assume a Secretaria de Obras Públicas do governo Ernesto Dornelles (PTB).
- 1954 — Quarenta dias depois do suicídio de Vargas, é eleito deputado federal.
- 1955 — É eleito prefeito de Porto Alegre pelo PTB com o slogan Nenhuma Criança sem Escola.
- 1958 — Aos 36 anos, com 670 mil votos, elege-se governador do Rio Grande do Sul.
- 1961 — Com a renúncia de Jânio Quadros em 25 de agosto, lidera um movimento no Rio Grande do Sul, conhecido como Campanha da Legalidade, para garantir a posse do vice-presidente João Goulart, que sofria resistência no meio militar.
- 1962 — Elege-se deputado federal pelo Estado da Guanabara, com a maior votação alcançada até então por um parlamentar no país.
- 1964 — Com o golpe militar, o inimigo número 1 do novo regime é obrigado a seguir os passos de João Goulart e deixar o Brasil.
- 1977 — É expulso do Uruguai pelo governo daquele país. Consegue asilo político nos Estados Unidos.
- 1979 — Depois de 15 anos de exílio, retorna ao país em setembro amparado pela Lei da Anistia.
- 1980 — Tenta resgatar a sigla PTB, que acaba ficando com o grupo da ex- deputada Ivete Vargas. Cria então o PDT.
- 1982 — É eleito primeiro governador do Rio pela via direta desde que Negrão de Lima conquistara o governo da antiga Guanabara, em 1965.
- 1989 — Na primeira eleição direta para presidente da República depois do regime militar, Brizola fica em terceiro lugar. Uma pequena margem de votos o separa do segundo colocado, Luiz Inácio Lula da Silva, que disputou o segundo turno com Fernando Collor.
- 1990 — Pela segunda vez vence a eleição para governador do Rio.
- 1994 — Disputa pela segunda vez a eleição presidencial, ficando em quinto lugar com uma votação inexpressiva, sem paralelo na sua carreira.
- 1998 — Concorre a vice de Lula na eleição presidencial. A dupla perde já no primeiro turno para Fernando Henrique Cardoso, que vence pela segunda vez consecutiva.
- 2000 — Concorre a prefeito do Rio, ficando na quarta colocação.
- 2002 — Candidata-se pela última vez, disputando uma vaga ao Senado pelo Rio. Amarga o sexto lugar. Na disputa à Presidência, apoia no primeiro turno Ciro Gomes (PPS). No segundo turno, vota em Lula. Depois do primeiro ano de governo, rompe com o presidente Lula e passa a fazer-lhe oposição.
- 2004 — Em 21 de junho, depois de ser internado às pressas no Hospital São Lucas, no Rio, com infecção pulmonar, sofre um infarto, morrendo às 21h20min.