Um político conciliador, que apelava para o fim dos radicalismos, está refletido na intensa troca de cartas ocorrida entre 1977 e 1979, período que antecedeu o retorno de Leonel Brizola ao Brasil. Depois de 13 anos no Uruguai, em setembro de 1977 o trabalhista foi expulso pelo governo uruguaio. O que parecia ser mais um golpe da ditadura militar brasileira nas pretensões do ex-governador acabou sendo o primeiro passo para o seu regresso.
A decisão de pedir asilo aos Estados Unidos, justificada pela política de direitos humanos do presidente Jimmy Carter, contrariou expectativas da esquerda no Brasil e no exílio. Para quem havia encampado multinacionais (ITT e Bond & Share) quando governador e combatido a interferência americana no país, a escolha soava contraditória. A Europa seria o caminho natural. É o que diz o ex-deputado Marcio Moreira Alves, em 26 de setembro de 1977:
"Julgamos extremamente provável que a sua aceitação de um asilo político nos Estados Unidos desencadeie uma campanha de calúnias e desmoralização na imprensa brasileira, incentivada pela ditadura. Sendo o senhor o mais popular dos líderes políticos brasileiros, homem que dedicou a sua luta política a combater os efeitos nefastos dos investimentos multinacionais e do imperialismo sobre as condições de vida do nosso povo; sendo ainda o mais lídimo herdeiro da derradeira mensagem de Getúlio Vargas, um ataque a sua reputação representaria, neste momento, um duro golpe para a luta independentista dos brasileiros, bem como para a dos que com esta luta se identificam, no Exterior".
A carta é um dos arquivos aos quais ZH teve acesso em 2005, quando a família permitiu que a reportagem revelasse com exclusividade o que constava nos arquivos que Brizola guardou ao longo da vida. Composto por documentos, cartas, fotos, diplomas, objetos, jornais, revistas, livros e fitas, o acervo contempla praticamente todas as fases da vida pública e privada do ex-governador. Em 2005, foi publicada a série "O Baú de Brizola".
Brizola estava disposto a limpar todos os obstáculos para retornar. Numa longa carta ao general Pery Bevilacqua, que em 1978 havia defendido a anistia, disse:
"Como bem o diz o amigo em seu pronunciamento, trata-se de desarmar os espíritos, de modo a promover a reconciliação nacional. Estou certo de que há condições para isto. A fase da radicalização passou. Tenho observado que hoje, mesmo entre os círculos outrora mais radicais, há uma disposição para o diálogo. Bastará que desapareçam as injustas discriminações entre brasileiros, que cessem os mecanismos da repressão, montados em nome da 'segurança nacional'".
A visita que o então presidente da Venezuela, Carlos Andrés Perez, fizera ao Brasil mereceu elogios do líder trabalhista:
"Pode ficar certo, senhor presidente, que a futura democracia brasileira e a imensa maioria do nosso povo lhes serão gratos. As sementes que Vossa Excelência lançou em nossa terra, certamente terão caído em terra fecunda".
Um partido pronto para nascer de novo
A certeza de que resgataria a sigla PTB tão logo regressasse ao país era tanta que Brizola já tinha até o layout do manifesto do partido, que fora criado por Getúlio Vargas em 1945. Todos os documentos de preparação para a volta ao Brasil citavam o Partido Trabalhista Brasileiro. Em 1980, por decisão do Tribunal Superior Eleitoral, Brizola perdeu a sigla para a ex-deputada Ivete Vargas. O ex-governador considerou a decisão da Justiça uma manobra do governo militar.
Interesse pelo cenário doméstico
Um exilado preocupado com os rumos da ditadura mas sem deixar desassistida a política caseira do Rio Grande do Sul. É assim que se mostrava Brizola no Exterior. Relatos minuciosos feitos por colaboradores descrevem as movimentações do senador Pedro Simon, eleito em 1978 e na época principal líder político gaúcho de oposição.
Companheiros do antigo PTB, proscrito pelo golpe de 1964, os dois líderes romperam quando Simon decidiu, em 1980, permanecer no MDB —, não se filiando ao PDT de Brizola. Durante todo o exílio do ex-governador perdurou a dúvida sobre se Simon ajudaria ou não a resgatar o espólio do trabalhismo num eventual processo de redemocratização, sob a liderança de Brizola.
"Ele (Simon) não é contra o novo PTB. Ele até disse uma coisa que me deixou pensativo: 'Mas, seu Guaragna, o MDB foi montado sobre o velho PTB. Agora, se criarmos um novo PTB, faríamos uma purificação no MDB, seriam eliminados os Ulysses (Guimarães), Tancredos (Neves) etc. Os (Paulo) Brossards também cairiam fora, e ficaríamos nós, no novo PTB. Mas o que não é possível é fazer um novo PTB com os mesmos homens, as mesmas teses, os mesmos vícios'", relata numa carta João Carlos Guaragna, uma espécie de pombo-correio de Brizola, incumbido da tarefa de manter o líder trabalhista informado no exílio de tudo o que ocorria na política local.
Brizola precisava de Simon na organização do novo partido, mas o senador gaúcho já havia montado uma estrutura partidária forte. Depois de 15 anos de MDB, dificilmente aceitaria participar da criação de um novo partido, que resgatasse o trabalhismo:
"Simon sabe, por outro lado, que tem o MDB na mão. Ele montou uma máquina de maneira artesanal, peça por peça. E montou sobre a estrutura do velho PTB. Portanto, ele está abrindo o jogo. No meu entendimento ele reconhece no amigo a liderança nacional, mas deseja permanecer com a regional".
A troca de cartas
- Carta do ex-governador Miguel Arraes, exilado na Argélia, para Brizola em 29 de setembro de 1977, sobre a possível transferência do trabalhista para Portugal:
"O primeiro-ministro (de Portugal, Mário Soares) demonstrou todo interesse no caso e afirmou que tomará as medidas necessárias para resolver a contento o problema do documento. Deu instruções para que um título de viagem fosse fornecido ao nosso amigo, embora não tenha decidido se fixará ou não residência em Portugal".
- Carta de Brizola ao ex-governador Miguel Arraes, exilado na Argélia, em 22 de fevereiro de 1979:
"Quando se reinicia a discussão sobre a democratização de nossa pátria, acho mais que conveniente que todas as nossas ações sejam pautadas pela mais franca e clara atitude e que venham a favorecer o desenvolvimento de uma profunda confiança recíproca. Como lhe comuniquei recentemente por telefone, assim como a outros amigos e jornalistas, lamentei realmente que o nosso Jarbas Vasconcelos não houvesse procurado os exilados e a mim pessoalmente em Lisboa. Francamente, desejava conhecê-lo, tantas foram as referências feitas pelo amigo em favor de sua personalidade e em torno das suas qualidades pessoais e políticas. Surpreenderam-me as repercussões que o fato alcançou no Brasil. Em meu entendimento foi uma decorrência dos problemas e das tensões internas do MDB".
- Carta do ex-deputado Marcio Moreira Alves escrita de Lisboa em 26 de setembro de 1977, logo após a expulsão de Brizola do Uruguai:
“(...) Quer-nos parecer que a acolhida que lhe foi dispensada tem finalidades políticas internas e externas nos Estados Unidos. Internamente, enfraqueceria a posição dos que defendem o isolamento diplomático do governo brasileiro. Externamente, pareceria colocar uma certa simpatia norte-americana por uma alternativa política no Brasil que o incluísse. Ora, parece evidente ser essa alternativa unicamente possível através da anistia e da convocação de uma constituinte, hipóteses que têm encontrado esclarecedoras reticências junto ao governo norte-americano”.
- Carta escrita por Brizola de Nova York, em 5 de janeiro de 1978, para o presidente da Venezuela, Carlos Andrés Perez, comentando a visita do chefe de Estado ao Brasil:
“Em minha condiçãode ex-governante ehomem público, que vivehá 14 anos praticamenteum largo e injusto exílio,tenho acompanhado abrilhante trajetória de seugoverno e oengrandecimento de seupaís no contextointernacional.Gostaria de afirmar-lheque sua visita (ao Brasil)teve um significado quetranscendeu de muito osobjetivos a que se propusera, tendo-se transformado numelemento catalisador e num grande impulso àredemocratização do Brasil. O exemplo democrático daVenezuela e as incisivas declarações de Vossa Excelênciaampliaram, deram unidade e elevaram significativamenteo nível qualitativo do movimento pela restauração doestado de direito, de um governo legítimo e representativoem minha Pátria”.
- Resposta de Carlos Andrés Perez em 24 de abril de 1978:
“Sinceramente, souum otimista sobre oBrasil, como já lheexpressei pessoalmente.Estou convencido de queboas perspectivas paraambos os povos nosoferece um futuropróximo. Sou umtrabalhador da causa daintegração latinoamericana e acreditocom firmeza que só seráalcançada dentro daliberdade e do irrestritorespeito aos direitos humanos".
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Linha do tempo
Dos 82 anos de vida, Leonel Brizola dedicou 60 à carreira pública
- 1922 — Em 22 de janeiro, no povoado de Cruzinha, Carazinho, nasce Leonel de Moura Brizola, filho de José e Oniva.
- 1936 — Deixa Carazinho para tentar a vida em Porto Alegre.
- 1942 — Depois de cursar à noite o colegial supletivo, no Colégio Júlio de Castilhos, e prestar serviço militar na Base Aérea de Canoas, forma-se piloto privado. Ingressa na Faculdade de Engenharia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, cujo curso completa em 1949.
- 1945 — Com um grupo de sindicalistas, funda o primeiro núcleo gaúcho do Partido Trabalhista Brasileiro. No ano seguinte é escolhido presidente da Ala Moça do PTB e passa a liderar comícios, despertando a atenção de Getúlio Vargas.
- 1947 — Elege-se deputado estadual.
- 1950 — Em 1º de março, casa-se com Neusa Goulart, irmã do ex-presidente João Goulart, tendo Getúlio Vargas como padrinho de casamento. Vargas se elegeria presidente em outubro daquele ano.
- 1951 — Concorre à prefeitura de Porto Alegre pelo PTB, mas é derrotado por uma pequena margem de votos pela aliança PSD-UDN-PL.
- 1952 — Assume a Secretaria de Obras Públicas do governo Ernesto Dornelles (PTB).
- 1954 — Quarenta dias depois do suicídio de Vargas, é eleito deputado federal.
- 1955 — É eleito prefeito de Porto Alegre pelo PTB com o slogan Nenhuma Criança sem Escola.
- 1958 — Aos 36 anos, com 670 mil votos, elege-se governador do Rio Grande do Sul.
- 1961 — Com a renúncia de Jânio Quadros em 25 de agosto, lidera um movimento no Rio Grande do Sul, conhecido como Campanha da Legalidade, para garantir a posse do vice-presidente João Goulart, que sofria resistência no meio militar.
- 1962 — Elege-se deputado federal pelo Estado da Guanabara, com a maior votação alcançada até então por um parlamentar no país.
- 1964 — Com o golpe militar, o inimigo número 1 do novo regime é obrigado a seguir os passos de João Goulart e deixar o Brasil.
- 1977 — É expulso do Uruguai pelo governo daquele país. Consegue asilo político nos Estados Unidos.
- 1979 — Depois de 15 anos de exílio, retorna ao país em setembro amparado pela Lei da Anistia.
- 1980 — Tenta resgatar a sigla PTB, que acaba ficando com o grupo da ex- deputada Ivete Vargas. Cria então o PDT.
- 1982 — É eleito primeiro governador do Rio pela via direta desde que Negrão de Lima conquistara o governo da antiga Guanabara, em 1965.
- 1989 — Na primeira eleição direta para presidente da República depois do regime militar, Brizola fica em terceiro lugar. Uma pequena margem de votos o separa do segundo colocado, Luiz Inácio Lula da Silva, que disputou o segundo turno com Fernando Collor.
- 1990 — Pela segunda vez vence a eleição para governador do Rio.
- 1994 — Disputa pela segunda vez a eleição presidencial, ficando em quinto lugar com uma votação inexpressiva, sem paralelo na sua carreira.
- 1998 — Concorre a vice de Lula na eleição presidencial. A dupla perde já no primeiro turno para Fernando Henrique Cardoso, que vence pela segunda vez consecutiva.
- 2000 — Concorre a prefeito do Rio, ficando na quarta colocação.
- 2002 — Candidata-se pela última vez, disputando uma vaga ao Senado pelo Rio. Amarga o sexto lugar. Na disputa à Presidência, apoia no primeiro turno Ciro Gomes (PPS). No segundo turno, vota em Lula. Depois do primeiro ano de governo, rompe com o presidente Lula e passa a fazer-lhe oposição.
- 2004 — Em 21 de junho, depois de ser internado às pressas no Hospital São Lucas, no Rio, com infecção pulmonar, sofre um infarto, morrendo às 21h20min.