A série de reportagens "40 anos da Legalidade" foi publicada em Zero Hora em agosto de 2001.
De 25 de agosto a 7 de setembro de 1961, o Brasil esteve próximo da guerra civil. A renúncia do presidente Jânio Quadros e a negativa dos ministros militares em aceitar a posse do vice, João Goulart, o Jango, criaram um dos mais graves impasses políticos do século passado no país.
No Rio Grande do Sul, governado por Leonel Brizola, um movimento pedia pela posse de Jango na Presidência e tinha apoio do 3º Exército (o equivalente na época ao Comando Militar do Sul). O conflito foi provisoriamente contornado com a adoção do parlamentarismo como contrapeso ao poder de Jango.
Em 2001, 40 anos depois do levante armado que sacudiu o Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, mentor e comandante do movimento, falou com ZH e reconstituiu a estratégia da operação. A renúncia do presidente Jânio Quadros, no dia 25 de agosto de 1961, desencadeou a Campanha da Legalidade.
A renúncia de Jânio Quadros
Às 22h15min do dia 24 de agosto de 1961, uma quinta-feira, o governador da Guanabara (hoje Estado do Rio), Carlos Lacerda (UDN), acusa pela TV o presidente Jânio Quadros de tramar um golpe de Estado. A denúncia do ferrenho conservador ganha destaque nos jornais do dia seguinte.
Lacerda denuncia o ministro da Justiça, Pedroso Horta, por tentar aliciá-lo para um golpe contra o regime. Horta teria convocado o governador para uma "reforma institucional" sob o argumento de evitar que o presidente tivesse de recorrer à esquerda por falta de instrumentos para governar. Jânio toma conhecimento da denúncia de Lacerda por volta das 5h de sexta-feira, pelo jornal Correio Braziliense.
O presidente comunica sua decisão de renunciar aos chefes da Casa Civil, Quintanilha Ribeiro, e da Casa Militar, general Pedro Geraldo. Jânio sequer pretende comparecer à solenidade do Dia do Soldado, marcada para as 8h no setor militar da Capital Federal, mas é dissuadido pelos dois chefes.
De volta ao Palácio do Planalto, Jânio reúne Quintanilha, Geraldo, Horta e seu secretário particular, José Aparecido de Oliveira, para fazer a comunicação oficial da renúncia. Pede ao chefe da Casa Militar que convoque os ministros militares Odílio Denys, da Guerra, Gabriel Moss, da Aeronáutica, e Sílvio Heck, da Marinha. No gabinete presidencial, os três ouvem pasmos o anúncio de Jânio.
Denys faz um apelo para que Jânio permaneça no cargo, afirmando que nenhum presidente havia gozado de tanto prestígio no Exército:
— Presidente, diga o que devemos fazer que será feito.
O presidente informa que a decisão é irrevogável, agradece a colaboração, estende-lhes a mão e diz:
— Minha última instrução, senhores ministros, é que mantenham a ordem em todo o país. Tomem suas providências.
A viagem de João Goulart
Jânio pretende passar o cargo ao presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli, mas é convencido por Quintanilha a viajar logo para evitar apelos inúteis. Às 10h25min, deixa o gabinete e se despede dos funcionários na antesala. Por volta de 11h, acompanhado da mulher, Eloá, embarca no avião Viscount presidencial rumo a São Paulo. De lá segue para um cruzeiro a bordo do navio Uruguay Star.
O vice-presidente João Goulart encontra-se em viagem oficial à China de Mao Tsé-Tung, acompanhado de parlamentares e empresários. A viagem havia sido programada pelo próprio Jango. Há tempos que seu partido, o PTB, vinha defendendo o reatamento das relações com a China comunista. É madrugada de sábado em Cingapura. Jango, que havia desembarcado no dia anterior, vindo de Hong Kong, chega tarde ao Hotel Raffles, depois de ter dado uma volta de automóvel para conhecer a cidade e de ter jantado em um restaurante malaio ao ar livre. João Etcheverry, responsável pelos contatos com a imprensa, é chamado ao telefone pelo correspondente da Associated Press e informado da renúncia do presidente.
No café da manhã, o senador Barros Carvalho propõe um brinde com champanha francês ao novo presidente do Brasil. Cauteloso, cheio de incertezas em relação aos acontecimentos, Jango sugere antes um "brinde ao imprevisível". Às 13h do dia 25, Pedroso Horta leva o documento da renúncia ao Congresso. O presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, que desconhece o fato, quando vê o ministro chegar, cercado por jornalistas, pensa que ele está fazendo hora antes de depor na Câmara sobre as acusações de Lacerda.
Tão logo recebe a carta de renúncia, o senador telefona para o aeroporto de Brasília e pede para anunciar pelo alto-falante o retorno imediato dos congressistas. Como é sexta-feira, a maioria dos parlamentares planeja viajar para seus Estados. Às 16h55min, em sessão extraordinária da Câmara e do Senado, Moura Andrade lê a carta e convida os parlamentares a assistir à posse de Mazzilli na Presidência da República.
O retorno
28 de agosto de 1961. O vice-presidente João Goulart encontra-se em Paris, o segundo ponto da sua escala de regresso ao Brasil, depois de uma viagem oficial à China. Lá, toma conhecimento das articulações do Congresso para adotar o sistema parlamentarista de governo. Emissários da cúpula militar deixam claro ao vice-presidente que essa é a única hipótese de ele chegar à Presidência.
No dia 30, quarta-feira, Jango chega a Nova York e é cercado por jornalistas no aeroporto. Perguntado se estava disposto a assumir a Presidência, responde:
— Mas não se trata de mim. É a Constituição do meu país que determina a minha posse.
Jango anuncia sua chegada ao Brasil pelo Rio Grande do Sul, único Estado no qual se sente a salvo da ordem de prisão que teria sido dada às guarnições dos aeroportos pelos ministros militares.
No dia 31 Jango desembarca em Buenos Aires, mas o aeroporto de Ezeiza está cercado por policiais. Jango permanece por três horas no hotel do aeroporto. Nenhuma representação oficial está presente. A imprensa não tem acesso à comitiva. O presidente argentino Arturo Frondizi tenta, com isso, evitar declarações polêmicas do vice-presidente e acalmar os meios militares de seu país. Semanas antes, os militares haviam manifestado irritação com a visita do líder da revolução de Cuba Ernesto Che Guevara a seu país de origem.
Às 18h05min, o avião DC-3 da Transcontinental decola rumo a Montevidéu. No aeroporto de Carrasco uma multidão de jornalistas aguarda Jango. O ministro das Relações Exteriores do Uruguai e o embaixador do Brasil Walter Sarmanho também estão presentes. De lá Jango segue para a embaixada do Brasil. No dia seguinte, às 11h30min, recebe o deputado Tancredo Neves (PSD-MG), principal articulador da proposta de implantação do parlamentarismo. Jango é convencido a aceitar um sistema que retira poderes do presidente e dá forças ao parlamento. Brizola e Jango conversam pelo telefone.
Madrugada do dia 28 de agosto. Um radioamador informa a Brizola que interceptou mensagem cifrada assinada pelo coronel Gustavo Borges, diretor do Departamento de Correios e Telégrafos, ordenando o bombardeio do Piratini por parte da 5ª Zona Aérea.
O acordo
No dia 1º de setembro de 1961 João Goulart negocia com o deputado Tancredo Neves em Montevidéu a aceitação do sistema parlamentarista de governo. Seria a única forma de chegar ao poder com a aceitação dos meios conservadores civis e militares.
Desde o início das negociações já estava definido que Tancredo seria o primeiro-ministro do gabinete parlamentarista. O deputado mineiro havia sido ministro da Justiça no último governo de Getúlio Vargas (1951-1954), padrinho e mentor político de Jango. Permanecera ao lado de Vargas até o suicídio do presidente, no dia 24 de agosto de 1954, e gozava de bom trânsito na cúpula do PTB gaúcho.
Jango combina com Brizola por telefone que Tancredo passará por Porto Alegre antes de seguir para Brasília para explicar os termos da emenda parlamentarista a ser votada no Congresso.
O avião Viscount presidencial chega a sobrevoar o aeroporto Salgado Filho, mas não pousa. Matreiro, o parlamentar mineiro acha estranho que um Estado sublevado há dias estivesse com um aeroporto vazio, sem esquema de segurança. O avião segue direto para a Capital Federal.
Brizola havia armado um plano para prendê-lo tão logo pisasse em solo gaúcho. Pretendia retê-lo e, com isso, barrar as negociações para a implantação do parlamentarismo. Com o avião presidencial, mandaria buscar Jango em Montevidéu.
No dia 2 de setembro, por volta da 1h, a Câmara dos Deputados aprova em primeiro turno a emenda à Constituição que institui o parlamentarismo.
No domingo, dia 3 de setembro, em sessão conjunta da Câmara e do Senado, é promulgada a emenda. Estavam presentes 56 senadores e 280 deputados.
Os personagens
João Goulart, o Jango
Deposto da Presidência da República pelo golpe militar de 31 de março de 1964, Jango exilou-se no Uruguai e na Argentina, onde possuía propriedades. No exílio, tentou organizar uma frente política de oposição, a Frente Ampla, com o ex-presidente Juscelino Kubitschek e o ex-governador Carlos Lacerda, também cassados. Morreu no dia 6 de dezembro de 1976, na Argentina, de ataque cardíaco.
Leonel Brizola
Ao deixar o governo, o gaúcho de Carazinho Leonel Brizola elegeu-se deputado federal pelo PTB do Rio. Em 1964, com o regime militar, exilou-se no Uruguai. Retornou ao Brasil em 1979, com a anistia. Nas eleições de 1982 e de 1990 foi eleito governador do Rio. Morreu de infarto em 21 de junho de 2004, no Rio de Janeiro, aos 82 anos.
Tancredo Neves
Depois de chefiar o primeiro gabinete de ministros sob a Presidência de João Goulart, Tancredo continuou encabeçando a bancada do PSD no Congresso. Com o golpe de 1964, tornou-se um dos chefes da oposição civil, encabeçando a ala moderada do Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Em 1984, enfrentou o candidato da situação, Paulo Maluf, no colégio eleitoral, e venceu a eleição indireta, tornando-se o primeiro presidente civil depois de 1964 e pondo fim à ditadura militar. Morreu no dia 21 deabril de 1985, sem tomar posse.
Jânio Quadros
Depois de renunciar à Presidência, em agosto de 1961, Jânio se afastou da política. Cassado pelo golpe de 1964, dedicou-se a atividades de professor de Português e dicionarista. Em 1985, disputou a prefeitura de São Paulo, que já havia ocupado nos anos 1950, e se elegeu.
Odílio Denys
Durante a crise de 1961 ocupou o cargo de ministro da Guerra como marechal. Junto aos seus colegas Gabriel Moss (Aeronáutica) e Sílvio Heck (Marinha), se opôs à posse de João Goulart na Presidência. Nascido em Pádua (RJ) em 17 de fevereiro de 1892, foi um dos líderes do movimento que instituiu o regime militar em 1964.
José Machado Lopes
O general Machado Lopes ocupou ocomando do 3º Exército de 6 de abril a1 0 de outubro de 1961. Natural do Rio, foi chefe do Estado-Maior do Exército de setembro de 1962 a setembro de 1963. Foi transferido para a reserva como marechal em 1964. Morreu em 1990, aos 84 anos.
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