Deposto pelo golpe militar de 1964, João Goulart, o Jango, foi um presidente improvável em um dos mais conturbados períodos da República brasileira. Morto no exílio fulminado por um infarto, o latifundiário tornado mártir por um regime de exceção ainda hoje é um personagem controverso para a esquerda que representou no poder, justamente por não resistir à investida dos tanques sobre a democracia.
Jango voou para Porto Alegre na madrugada do golpe, onde foi recebido por Leonel Brizola e militares legalistas. Instado por Brizola a liderar um movimento de reação aos generais insurretos, declinou justificando o temor de provocar um “banho de sangue”. Para evitar ser preso pelos golpistas, se exilou no Uruguai com a família.
— Jango jamais poderia ter resistido. Seu dispositivo tinha 20 mil armas, 6 milhões de tiros, insuficiente para combater um exército inteiro. O maior exemplo é que todas as iniciativas do Brizola fracassaram. Além disso, Jango nunca foi disruptivo. Era um centrista — diz o historiador Gunter Axt.
Gaúcho de São Borja, egresso de uma família de grandes proprietários rurais, João Belchior Marques Goulart debutou na política como deputado estadual eleito em 1947. Filiado ao PTB a convite de seu padrinho político, o então ex-presidente Getúlio Vargas, Jango era um parlamentar discreto, a ponto de discursar uma única vez na Assembleia Legislativa. Todavia, era um interlocutor frequente de Vargas, seu vizinho de estância no interior de São Borja, onde vivia um exílio voluntário após a renúncia em 1945.
Em 1950, Vargas se elegeu presidente e Jango, deputado federal. Três anos depois, o pupilo era nomeado ministro do Trabalho com a missão de apaziguar a tensa relação do governo com os trabalhadores, insatisfeitos com os baixos valores dos salários. Ao conceder um reajuste de 100% no salário mínimo, debelou a crise e se tornou popular. Com o suicídio de Vargas, em 1954, Jango perdeu os holofotes mas detinha o controle do PTB, um ativo eleitoral importante.
— Jango era um homem de sorte. Primeiro, foi afilhado de Getúlio Vargas. Depois, quem o retira do ostracismo é Juscelino Kubitschek, que precisava do apoio do PTB e o convida para ser vice na sua chapa à Presidência — conta o historiador Marco Antônio Villa, autor do livro Jango: um perfil.
Nunca foi de esquerda, nem social-democrata, muito menos comunista. Era um latifundiário.
MARCO ANTÔNIO VILLA
Historiador
Eleito com Juscelino, Jango tem pouco espaço no governo, mas disputa a reeleição em 1960, tendo como candidato a presidente o Marechal Henrique Lott, que cinco anos antes havia garantido a posse de Juscelino e Jango.
Naquele tempo, o eleitor não votava em chapa única, podendo escolher um presidente e um vice de chapas diferentes. Dessa forma, Jânio Quadros é eleito presidente e Jango, vice. Em agosto de 1961, com pouco mais de seis meses no cargo, Jânio renuncia. Na ocasião, Jango estava na China, o que aumenta as desconfianças de um alinhamento com movimentos comunistas internacionais.
Diante da ameaça de um golpe, Brizola lidera a Campanha da Legalidade. Foram dias tensos, até que o Congresso aprova uma emenda estabelecendo o parlamentarismo no Brasil. Para evitar confrontos, Jango aceita o novo regime, e Tancredo Neves assume como primeiro-ministro, liderando um gabinete de “conciliação nacional”. Em 1963, um plebiscito aprova o retorno do presidencialismo.
Começa então o período mais turbulento de sua gestão. Com a Guerra Fria no auge, Jango deflagra as chamadas “reformas de base”, um conjunto de medidas econômicas e sociais, como reforma agrária, educacional e bancária, que fortalecem seus vínculos com a esquerda. Em um cenário de economia em crise e insubordinações militares no Exército e na Marinha, o país vive um clima de tensão política que culmina com o golpe de 31 de março de 1964.
Jango foi alertado dos riscos e continuou tensionando. Faltou habilidade política.
GUNTER AXT
Historiador
— Jango foi alertado dos riscos e continuou tensionando. Faltou habilidade política. Ele foi levado a um processo de radicalização pelo Brizola, que imantava a esquerda com sua autoconfiança infantilizada. Quando o golpe veio, não teve como resistir — resume Axt.
Exilado, Jango perdeu a condição de liderança nacional. Em 1966, chegou a participar da Frente Ampla, movimento suprapartidário que tentou sem sucesso restabelecer a democracia. Acabou falecendo em dezembro de 1976, após sofrer um ataque cardíaco em sua fazenda na cidade argentina de Mercedes.
— Jango era um conciliador. Nunca foi de esquerda, nem social-democrata, muito menos comunista. Era um latifundiário — afirma Villa.
— A gente vive momento de revisitar o passado com certas paixões ideológicas. Jango hoje pode ser lembrado como mártir por alguns e como comunista por outros. Não fui nem uma coisa nem outra — completa Axt.