Não há cliente encrencado ou juiz rigoroso que possa intimidar Cezar Roberto Bitencourt. Aos 73 anos de idade e 45 de carreira, o advogado do tenente-coronel Mauro Cid coleciona tantos embates fervorosos no Judiciário quanto vitórias nos tribunais. Um dos mais respeitados criminalistas do país e autor de livros fundamentais do Direito Penal, Bitencourt foi onipresente no noticiário nos últimos dias ao anunciar, e depois negar, uma pretensa confissão do homem que detém os segredos mais recônditos do governo Jair Bolsonaro. Na quinta-feira (24), ele se reúne com o ministro Alexandre de Moraes, relator dos inquéritos contra o militar no Supremo Tribunal Federal (STF).
— Eu vou dar 20 ou 30 versões, posso dizer o que quiser — desconversou o advogado no domingo (20), três dias após ter dito que Mauro Cid iria admitir ter vendido joias sauditas a mando do ex-presidente.
Ajudante de ordens durante os quatro anos de Bolsonaro no Palácio do Planalto, Mauro Cid é suspeito de uma série de crimes. Está preso desde 3 de maio por suposto envolvimento na falsificação de certidões vacinais, mas também é investigado por fazer saques usando cartões corporativos da Presidência, por participação em milícias digitais e articulação de golpe de Estado, além, claro, do caso das joias.
Tanta encrenca mal resolvida levou seus dois advogados anteriores a abdicarem da causa, alegando quebra de confiança. Bitencourt assumiu a defesa na terça-feira da semana passada e, em menos de 24 horas, causou alvoroço em Brasília ao declarar que o cliente apenas cumpria ordens.
— Obediência hierárquica para um militar é muito séria e muito grave. Exatamente essa obediência a um superior militar é o que há de afastar a culpabilidade dele. Ordem ilegal, militar cumpre também. Ordem injusta, cumpre — afirmou à GloboNews.
Quem acompanha de perto a trajetória de Bitencourt não se surpreendeu com a ruidosa entrada em cena do criminalista. Em 2006, oito anos antes da eclosão da Lava-Jato, Bitencourt conseguiu afastar do processo contra um cliente o então temido juiz da 2ª Vara Federal de Curitiba, Sergio Moro. À época, Moro conduzia o Caso Banestado, escândalo bilionário de remessa ilegais de recursos ao Exterior por meio de contas do banco estadual do Paraná.
Bitencourt defendia o empresário Rubens Catenacci, um dos investigados na operação. Antes de uma audiência judicial, Moro determinou à Polícia Federal que monitorasse os voos do advogado. Na semana seguinte, o juiz decretou a prisão de Catenacci quando ele desembarcava em Curitiba para nova audiência. Bitencourt conseguiu um habeas corpus no Tribunal Regional Federal da 4ª Região e, enquanto esperava para soltar o cliente, Moro expediu novo mandado de prisão. No total, foram quatro mandados e quatro hábeas sucessivos, num prende e solta que só teve desfecho no sábado, quando a ordem de soltura derradeira foi acatada por um juiz substituto. Ao cabo da peleia judicial, o advogado obteve no STF o afastamento do juiz do caso.
— Eu fui o primeiro a sofrer as agressões do Moro. Pedi a suspeição dele e ganhei, afastei esse sujeito — afirma o advogado a GZH.
Nascido em Cacique Doble, município de 5 mil habitantes do norte do Rio Grande do Sul, Bitencourt é o mais velho dos nove filhos de Getúlio e Albertina. O casal, herdeiro de famílias ricas, perdeu as terras quando o primogênito ainda era criança. Getúlio foi trabalhar de motorista, Albertina de professora e Bitencourt, adolescente, plantava grama nas propriedades da região para ajudar no sustento da casa.
Disposto a deixar o campo e ascender profissionalmente, o advogado se embrenhou nos estudos e foi professor, cartorário e inspetor da Polícia Civil – exercendo funções de delegado – antes de passar no vestibular para Direito na Universidade de Passo Fundo (UPF). Dois anos após se formar, ingressou no Ministério Público, onde atuou até 1996, aposentando-se como procurador de Justiça. A experiência na lida do crime seria fundamental na próxima etapa da carreira, como advogado criminal.
— O Cezar conhece o cego dormindo e o manco sentado. Aprendeu como operam todos os lados do Direito Penal, é um advogado da velha guarda, estrategista — diz o jurista Lênio Streck, que ao lado de Bitencourt dirigiu a Escola Superior do Ministério Público.
Primeiro advogado gaúcho a fazer doutorado no Exterior, Bitencourt foi convidado a dar aulas na PUCRS. Na universidade, criou a primeira especialização em ciências criminais do país e escreveu Tratado de Direito Penal, cartapácio de 4.036 páginas distribuídas em seis volumes que está na 29ª edição. Considerado um cânone do Direito Penal no país, é o livro mais vendido do segmento, com cerca de 800 mil exemplares comercializados.
— É um livro excelente, faz tu te apaixonar por Direito Penal e querer ser criminalista. Eu decorava trechos inteiros para fazer as provas orais — conta Thiago Neibert, advogado e ex-aluno de Bitencourt na PUC-RS.
Nos anos 2000, já consagrado como doutrinador e à frente de uma das bancas mais caras do Estado, abriu um escritório em Brasília, onde a clientela crescia exponencialmente. Crítico do instituto da delação premiada, atacou os métodos da força-tarefa da Lava-Jato e taxou a prisão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva como “açodada, intempestiva e ilegal”, fruto de uma “condenação sem provas”.
Um dos seus clientes na operação foi o ex-deputado Rocha Loures (MDB-PR), preso com uma mala contendo R$ 500 mil supostamente destinados ao então presidente Michel Temer. Ambos acabaram absolvidos.
Colorado, no terceiro casamento e pai de duas filhas, Bitencourt foi contratado por Mauro Cid por indicação de uma prima do militar, também advogada e leitora de alguns dos seus 32 livros. Após o estrépito das declarações iniciais, o criminalista submergiu. Tem evitado a imprensa e estudado o caso para definir a melhor estratégia para absolver o cliente. No universo jurídico, sua aparente contradição nas entrevistas é vista como uma ação planejada, na qual o advogado moveu uma peça para observar o movimento alheio antes de mover a seguinte.
— Em geral, há duas formas de isenção de responsabilidade em crime. Uma é a legítima defesa. Outra, obediência à ordem superior hierárquica. O Cezar é independente e tecnicamente perfeito, sabe muito bem o que está fazendo e pensa no cliente, sem se submeter a contexto político — comenta Luciano Feldens, ex-aluno de Bitencourt e hoje um dos mais renomados criminalistas do país.