Ao anular a terceira condenação do ex-deputado Eduardo Cunha (PTB) na Lava-Jato, o Supremo Tribunal Federal (STF) reacendeu o debate sobre impunidade no país. A partir do entendimento de que crimes comuns conectados a infrações eleitorais são de competência da Justiça Eleitoral, o ex-presidente da Câmara se livrou de penas que, somadas, alcançaram 54 anos e cinco meses de prisão.
Cunha foi beneficiado por uma jurisprudência que, desde 2019, já se estendeu a dezenas de políticos, como o vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB), o deputado Aécio Neves (PSDB) e os ex-governadores José Roberto Arruda (PL-DF) e Ricardo Coutinho (PT-PB). Na ocasião, nos estertores da Lava-Jato, os ministros julgavam um recurso do prefeito do Rio, Eduardo Paes, e do deputado federal Pedro Paulo, à época ambos filiados ao DEM.
A dupla respondia inquérito por suposto caixa 2 de campanha e lavagem de dinheiro. Em recurso ao STF, sustentaram que o caso deveria ser analisado pela Justiça Eleitoral, e não pela Justiça Federal. A tese acabou acolhida por seis votos a cinco. Anteriormente, decisões semelhantes já vinham sendo tomadas na 2ª Turma do tribunal, onde tramitam casos da Lava-Jato.
Todavia, havia divergências internas e alguns ministros tomavam decisões monocráticas divergentes, ora em benefício, ora contra os acusados. Com a maioria formada diante da composição plena do STF, o julgamento virou referência e gerou um efeito cascata. Desde então, o STF, o Superior Tribunal de Justiça e tribunais de segunda instância têm declinado competência sempre que há crime eleitoral conexo a crime comum.
— Não discuto a decisão, até porque já está tomada, mas ela abre espaço para que algumas defesas façam alegações com base em ficção. É preciso indícios concretos de autoria e participação da pessoa, e não alegações genéricas de caixa 2, desconexas de qualquer prova mínima. Já vi investigado recorrer do arquivamento de uma ação para dizer que havia sim, crime eleitoral, tudo com objetivo de fugir da justiça comum — comenta o promotor Rodrigo Zílio, que por seis anos coordenou o Ministério Público Eleitoral no RS e atualmente é membro auxiliar da Procuradoria-Geral Eleitoral, em Brasília.
Zílio lembra que durante a Lava-Jato muito se criticava o fato de o então juiz Sergio Moro puxar para si casos que não envolviam a Petrobras, tampouco teriam ocorrido em Curitiba, tornando-se uma espécie de “juízo universal” da corrupção nacional. Mais tarde, esse alargamento da competência original da 13ª Vara Federal se tornaria um dos motivos de anulação de suas decisões. Para Zílio, a remessa em massa de casos de corrupção para a Justiça Eleitoral tem teor semelhante, porém em sentido contrário.
— Antes, tudo era corrupção na Petrobras e ia para Curitiba. Agora, tudo é caixa dois e vai para a Justiça Eleitoral. É preciso cuidado para evitar que esse entendimento cause desvio de finalidade — alerta Zílio.
Para o advogado Luciano Feldens, que atuou no Ministério Público Federal e há 15 anos conduz um dos mais prestigiados escritórios de advocacia do país, está justamente numa decisão de Moro o erro original que resultou no entendimento firmado pelo STF. Ao deflagrar a sétima fase da Lava-Jato, em 2014, Moro justificou os mandados de prisão de donos e altos executivos de empreiteiras dizendo haver indícios de que os casos de corrupção envolviam doações eleitorais oficiais e não oficiais. A decisão, afirma Feldens, contrariou dispositivo constitucional que determina o envio à justiça eleitoral sempre em que há relação de crimes comuns com eleitorais.
— Ali deveria ter sido corrigido o rumo. Se há concurso de crimes, prevalece a justiça especializada. É o que diz a Constituição e o que reafirmou o STF. Se hoje os crimes prescrevem e há impunidade, vamos atribuir a paternidade: é um erro originado no Estado — afirma.
Com oito vezes menos magistrados do que no restante do Judiciário e apenas 6% do seu orçamento, a Justiça Eleitoral não tem juízes permanentes. Nos municípios, a vara eleitoral é ocupada por um dos juízes locais, quando não pelo único. Nos tribunais regionais, a composição é mista, com juízes estaduais e federais. Tal diversidade, somada ao reduzido número de funcionários, motiva discussão sobre o preparo e a estrutura das equipes para condução de processos complexos, por vezes envolvendo organizações criminosas com ramificações na iniciativa privada, em governos e em partidos.
— A justiça eleitoral também é equipada para cuidar de crimes, inclusive mais do que o Supremo, que é uma corte constitucional. Mas poderia criar equipes especializadas. Com mais estrutura, teria capacidade de ser mais ágil ao lidar com essas ações — argumenta o advogado Márcio Felix, especialista em direito eleitoral.
Veja alguns dos beneficiados pelo entendimento do STF
Eduardo Cunha (PTB)
Com pena total de 54 anos, teve três condenações anuladas, no STF e no TRF da 1ª Região, e os casos remetidos à Justiça Eleitoral
Geraldo Alckmin (PSB)
Investigado por suposto caixa 2 de R$ 10 milhões nas eleições de 2010 e 2014, teve o inquérito remetido à Justiça Eleitoral de São Paulo.
Aécio Neves (PSDB)
Investigado ao lado do hoje ministro do TCU Antônio Anastasia e de dois deputados, teve o caso remetido do STF ao TRE de Minas Gerais.
Henrique Eduardo Alves (MDB)
Condenado a oito anos de prisão por fraudes no FGTS, teve a condenação anulada e os autos enviados ao TRE do Rio Grande do Norte.
José Roberto Arruda (PL)
Em três dias, teve duas condenações criminais anuladas no STF e ambos os processos remetidos à Justiça Eleitoral do Distrito Federal.
Ricardo Coutinho (PT)
Apontado em denúncia do MP como líder de esquema de fraudes na saúde, teve a investigação enviada à Justiça Eleitoral da Paraíba.
Marconi Perillo (PSDB)
Denunciado por corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa, teve todas as decisões judiciais anuladas no STF, inclusive a que enviou o caso à Justiça Eleitoral.
Fernando Pimentel (PT)
Investigado por lavagem de dinheiro em campanhas, teve quatro ações penais e investigações remetidas à Justiça Eleitoral de Minas Gerais.