No primeiro final de semana de abril, a invasão de um engenho desativado na cidade de Cumbre, em Pernambuco, deu início às ações do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) durante o chamado Abril Vermelho – uma referência ao massacre de Eldorado dos Carajás (PA), em 1996.
Trata-se da 17ª ocupação de propriedade rural este ano no país. Com isso, em quatro meses do novo mandato presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva, a quantidade dessas ocorrências já equivale a quase um terço (27%) do total de registros somados nos quatro anos da gestão de Jair Bolsonaro (62).
Na comparação anual (veja no gráfico), as 17 invasões em quatro meses de 2023 superam o dado fechado de 2019 (11), 2020 (11) e igualam o quantitativo de 2021 (17). A ofensiva dos sem-terra pressiona o Palácio do Planalto, uma vez que o governo fica entre aliados tradicionais e o agronegócio, setor com força econômica e política, alinhado ao bolsonarismo e representado por uma numerosa bancada no Congresso, onde Lula ainda precisa construir base estável para aprovar seus projetos.
A agenda do MST reivindica a criação de cadastro único e cronograma de atendimentos para cerca de 100 mil famílias que vivem acampadas em todo o Brasil. Também cobra por uma resolução para as 30 mil famílias que estão, agora, em áreas de pré-assentamento.
No RS, existem 345 assentamentos criados ou reconhecidos pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que abrigam 12.186 famílias. Santana do Livramento é o município com maior número: são 30 projetos, onde vivem 868 famílias. O assentamento Filhos de Sepé, em Viamão, é o de maior área, com 9,5 mil hectares e 364 famílias.
Permissividade
Em um dos lados da disputa, os produtores rurais gaúchos defendem que a maior incidência de invasões nos primeiros meses de 2023 denota maior permissividade do governo e coloca a classe em estado de alerta. É o que diz, por exemplo, Paulo Ricardo Dias, coordenador da Comissão de Assuntos Fundiários e Segurança Rural da Federação da Agricultura do Estado (Farsul).
Mesmo com apenas duas ocorrências entre 2019 e 2023 (nenhuma neste ano), no Estado a preocupação com eventuais ações dos movimentos gerou a reformulação das comissões temáticas e a implantação de um sistema de comunicação integrado. A meta, revela o dirigente, é possibilitar troca de informações instantâneas sobre movimentações e canais facilitados com as forças de segurança. Para Dias, todos os assentamentos do Estado são um foco em potencial a ser monitorado.
— O primeiro temor é que esse tipo de manifestação e invasão é acompanhada de muita violência. Esse é um período em que os produtores e as famílias estão mais presentes nas propriedades em razão da colheita do arroz — comenta o coordenador.
Ao tecer críticas ao plano nacional de reforma agrária, que, segundo ele, não atingiu os resultados econômicos e sociais desejados, o dirigente afirma que a maioria das pessoas assentadas “não tem vocação” agrícola.
O primeiro temor é que esse tipo de manifestação e invasão é acompanhada de muita violência. Esse é um período em que os produtores e as famílias estão mais presentes nas propriedades
PAULO RICARDO DIAS
Coordenador da Comissão de Assuntos Fundiários e Segurança Rural da Farsul
— Há aqueles que têm, conversamos com esses que já obtiveram seus títulos e os apoiamos através de iniciativas do Senar (Serviço Nacional de Aprendizagem Rural), mas invasão alguma será tolerada — afirma.
Acordo
Procurado, o braço do MST no Rio Grande do Sul não atendeu às solicitações de GZH. O presidente da Federação dos Trabalhadores na Agricultura no Rio Grande do Sul (Fetag), Carlos Joel da Silva, não apoia as ocupações no campo promovidas pelo MST, mas avalia que a situação no Estado é “mais tranquila” do que em outras regiões do país.
A entidade assinou em 2021 um Acordo de Cooperação Técnica (ACT) para a execução de atividades de apoio administrativo ao Incra. A partir de então, assumiu a função de encaminhar os Contratos de Concessão de Uso (CCUs) das propriedades destinadas aos assentamentos federais e também os Créditos Instalação, emitidos pelo Incra, aos assentados gaúchos.
— Somos contra invasões, mas defendemos que todo agricultor, cujo maior sonho é ter um pedaço de terra, seja tratado com dignidade. Essas pessoas não deveriam ter de ir para debaixo de uma lona preta lutar por um direito, porque a lei é clara e toda área improdutiva tem que servir de base para a reforma agrária — argumenta Silva, que diz identificar “omissão” de todos os governos ao não criarem as condições ideais de acesso às terras.
Uso de força policial gera divergências
No fogo cruzado, o novo presidente do Incra, Cesar Aldrighi, que já atuava de maneira interina, foi nomeado em 23 de março. O gaúcho, com formação em engenharia agronômica pela Universidade Federal de Pelotas, é perito federal agrário e servidor de carreira do instituto desde 2006.
Defendemos que todo agricultor, cujo maior sonho é ter um pedaço de terra, seja tratado com dignidade. Essas pessoas não deveriam ter de ir para debaixo de uma lona preta lutar por um direito
CARLOS JOEL DA SILVA
Presidente da Federação dos Trabalhadores da Agricultura no Rio Grande do Sul
Em uma live na quinta-feira (6), antecipou que, junto ao Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA) e a Presidência da República, deverá anunciar, ainda este mês, o plano emergencial de reforma agrária. Ele explica que a ideia é implementar várias medidas, muitas delas alinhadas com a agenda de reivindicações dos movimentos pela reforma agrária.
Para ele, a prioridade é recompor o orçamento (que já foi de R$ 4,8 bilhões em 2010, no segundo mandato de Lula, e hoje conta com R$ 270 milhões). Isso é necessário para retomar os assentamentos no campo, descontinuados pela gestão passada, lembra.
Para se ter uma ideia, dos 345 assentamentos do Rio Grande do Sul, 193 são federais e servem de moradia e sustento para 8.173 famílias. Outros 142 são estaduais (3.706 famílias) e dois municipais (21 famílias). Há ainda oito reassentamentos de comunidades rurais atingidas por barragens (286 famílias). O projeto federal mais recente foi criado sete anos atrás, em 2016. Trata-se do PA Herdeiros da Resistência, que fica no município de Pelotas.
Conflitos
Sobre o Abril Vermelho e os conflitos fundiários, Aldrighi afirma que o Incra tem de cumprir a função de ouvidoria e mediação.
– Não vamos tratar aqui os conflitos com força policial. Os conflitos são recebidos pela ouvidoria do Incra e do MDA e tratados dentro de um diálogo com as forças policiais e com o Judiciário. Ao Incra cabe obter a terra e dialogar com esse conflito. O Incra não fez isso (nos últimos anos).Quando você se omite de sua tarefa constitucional, é possível que esses conflitos não tenham aparecido nos anos anteriores porque quem se manifestava podia sofrer represálias. Hoje, além de buscar soluções para os conflitos, a gente ouve os movimentos socais e isso está previsto na Constituição, que o gestor público tem que dialogar com os beneficiários de suas políticas – observou.
A declaração do novo presidente do Incra demarca uma divisão que existe, pelo menos, desde a década de 1980 no país. É o que sustenta o deputado federal gaúcho e integrante da bancada ruralista no Congresso, Alceu Moreira (MDB). O parlamentar considera que, atualmente, o MST não tem legitimidade e defende que o aumento das invasões em 2023 explica-se pela ligação do movimento com o Partido dos Trabalhadores.
— A pauta é retrógrada e vai transformar a insegurança jurídica em uma redução da nossa capacidade produtiva, além de demandar ações do Ministério Público e das forças de segurança. Se esse governo quer dar terra, que as compre e faça, mas o interesse não é escriturar as áreas, é manter o movimento como massa de manobra, porque um agricultor com vocação produtiva não está disposto a perambular com sua família por rodovias, buscando um pedaço de terra. Na sua essência social, ele tem uma comunidade, uma paróquia, e só o que quer é poder produzir — argumenta.
Para Moreira, outra vez contrariando o presidente do Incra, as ocupações e os conflitos devem ser tratados pelas forças de segurança, pois o “direito à propriedade é cláusula pétrea da Constituição”. Ele também lembra que o governador Eduardo Leite declarou no final de março que “qualquer invasão terá a resposta imediata do governo do Estado”.