Após cinco anos de intensas negociações entre os governos estadual e federal, a adesão do Rio Grande do Sul ao Regime de Recuperação Fiscal da União (RRF) está em risco. Sete dos 10 pré-candidatos ao Piratini criticam os termos do acordo e trabalham para impedir a aprovação do último projeto de lei que pode encaminhar a assinatura do contrato com o Planalto.
Concebido como mecanismo de socorro financeiro para Estados em agonia fiscal, o RRF permite suspensão do pagamento da dívida com a União por um ano, retomada gradual dos desembolsos e contratação de empréstimos com garantia federal. Em contrapartida, impõe um rígido controle das contas públicas, impedindo aumentos de despesas sem lastro correspondente.
A despeito da oposição sistemática dos partidos de esquerda, o assunto estava praticamente decidido na Assembleia Legislativa. Nas quatro votações envolvendo o RRF nos últimos anos, os então governadores José Ivo Sartori e Eduardo Leite alcançaram maioria com facilidade. Em 2018, ao autorizar o Estado a aderir ao regime, o governo venceu com 30 votos a 18. No final do ano passado, em nova votação em função de alterações na legislação federal original, a vitória teve placar ainda mais folgado: 34 a 12.
Todavia, um movimento capitaneado pela subseção local da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/RS) e pela Associação de Juízes do Estado (Ajuris) galvanizou interesses de pré-candidatos à esquerda e à direita do espectro político. Em artigo publicado em Zero Hora em 26 de março, os presidentes da OAB/RS, Leonardo Lamachia, e da Ajuris, Cláudio Martinewski, sustentam que a dívida está quitada e que a assinatura do acordo ampliaria “a submissão do RS à política econômica da União", mantendo o Estado “refém da lógica da dívida”. O argumento tem por base o fato de que o Estado devia R$ 9,5 bilhões em 1998, quando assinou o atual contrato, e desde então já pagou R$ 37,1 bilhões. Ainda assim, falta pagar R$ 73,7 bilhões.
A tese é encampada à direita por Luis Carlos Heinze (PP), Marco Della Nina (Patriota), Onyx Lorenzoni (PL) e Roberto Argenta (PSC), e à esquerda por Beto Albuquerque (PSB), Edegar Pretto (PT) e Pedro Ruas (PSOL). Tal postura é contraditória com votos das bancadas de PP, PSB e DEM (ex-partido de Onyx) quando temas ligados ao RRF foram apreciados pela Assembleia. Em todas as ocasiões, deputados dessas três legendas apoiaram a adesão. Há ainda reclamações de que o acordo engessa a gestão do Estado, cujas decisões passariam a ser fiscalizadas por um comitê de supervisão do cumprimento do regime.
A favor da entrada no RRF estão Gabriel Souza (MDB), Ranolfo Vieira Júnior (PSDB) e Ricardo Jobim (Novo). Eles compartilham a visão do governo de que o acordo garante fôlego e previsibilidade para o Estado retomar o pagamento gradual das parcelas da dívida, além de permitir a contratação de financiamento para quitar R$ 16 bilhões em precatórios até 2029.
O pedido para adesão foi protocolado pelo então governador Eduardo Leite em dezembro do ano passado, após a efetivação de um conjunto de medidas, como criação de um teto de gastos, privatização de estatais e reformas administrativa e previdenciária. Um mês depois, a Secretaria do Tesouro Nacional declarou o Estado “habilitado a aderir ao regime”.
Em fevereiro, uma mudança na legislação federal do RRF obrigou o Piratini a fazer adequações na lei estadual que autoriza a adesão. É essa votação, marcada para a próxima terça-feira (10), que tem mobilizado as bancadas da Assembleia. Federações empresariais entraram na briga em favor do RRF. Uma eventual derrota do governo pode impedir a formalização do acordo com a União, ao constar nos relatórios técnicos que serão apresentados ao Ministério da Economia. Com base nesses relatórios, a pasta encaminhará parecer à Presidência da República, a quem cabe chancelar a adesão do Estado. Porém, a simples habilitação ao regime já coloca o Rio Grande do Sul sob medidas de contenção fiscal, como proibição de reajuste aos servidores e contratação de pessoal.
— Já estamos sob a égide do RRF e é isso que hoje nos garante a suspensão do pagamento da dívida. Mas a qualquer momento o Estado pode sair. Basta pedir autorização ao Legislativo e dizer ao governo federal que não quer mais. E, claro, depois explicar como vamos dispender todo ano R$ 6 bilhões para pagar precatório e dívida — comenta o secretário-chefe da Casa Civil, Artur Lemos.
A opinião dos pré-candidatos
Beto Albuquerque (PSB)
"O governo do Estado apressa a renegociação ao ponto de abrir mão da liminar do STF, que suspendeu os pagamentos da dívida, beneficiando 15 Estados. Isso foi o que permitiu colocar os salários dos servidores em dia e garantiu os investimentos dos últimos anos. Este processo precisa ser suspenso até a posse dos novos governadores e do presidente para que, a partir de 2023, possamos fazer uma discussão conjunta. Há um desconhecimento sobre a totalidade das obrigações que a União irá impor ao RS. Vou lutar para provar que esta dívida está paga."
Há um desconhecimento sobre a totalidade das obrigações que a União irá impor ao RS. Vou lutar para provar que esta dívida está paga.
Edegar Pretto (PT)
"Sou contra. O Regime de Recuperação Fiscal é uma imposição dos governos Bolsonaro e Leite para manter a população do RS presa a uma dívida que já foi paga. A dívida era de R$ 9,5 bi, já pagamos R$ 37 bi e ainda devemos mais R$ 73 bi. O Plano Fiscal não só impõe uma série de restrições ao Estado. Quando ele acabar, em 10 anos, terá tornado a dívida ainda maior. Não é a única solução. Em 2013 fizemos a primeira negociação da dívida entre os governos Tarso e Dilma, diminuindo o estoque da dívida em R$ 22 bi. Temos de retomar essa mesa de negociação, sem a submissão que está ocorrendo agora."
O Regime de Recuperação Fiscal é uma imposição dos governos Bolsonaro e Leite para manter a população do RS presa a uma dívida que já foi paga.
Gabriel Souza (MDB)
“O Regime de Recuperação Fiscal é fruto de um trabalho árduo do governo Sartori e da atual gestão que garantirá a longo prazo o equilíbrio das contas públicas. Estranhamente, o RRF começa a ser questionado justamente em um ano eleitoral. Quem quer rever este tema está fazendo demagogia eleitoral, olhando para trás. Hoje, com as finanças bem encaminhadas, precisamos olhar para o futuro, para o desenvolvimento do Estado.”
Estranhamente, o RRF começa a ser questionado justamente em um ano eleitoral. Quem quer rever este tema está fazendo demagogia eleitoral, olhando para trás.
Luis Carlos Heinze (PP)
“Junto da minha equipe técnica do plano de governo e nossa bancada, vemos isso como uma questão prioritária e não há espaço para erros, precisa ser bem discutida, pois há muita divergência nesse valor. Quero o melhor para o nosso Estado.”
Vemos isso como uma questão prioritária e não há espaço para erros, precisa ser bem discutida, pois há muita divergência nesse valor.
Marco Della Nina (Patriota)
"Sou contra a adesão do Estado do RS ao Regime de Recuperação Fiscal da União nos moldes como foi apresentado, elaborado e aprovado. Na verdade, é um retrocesso e um atraso ao desenvolvimento do Rio Grande do Sul. Pois prejudica o funcionalismo público, prejudica o povo e não resolve o problema da incompetência dos gestores do passado. O problema de fato do RS continua sendo os desvios e a corrupção que rola dentro do governo."
Na verdade, é um retrocesso e um atraso ao desenvolvimento do Rio Grande do Sul.
Onyx Lorenzoni (PL)
“Esse acordo precisa ser debatido com os gaúchos, o povo precisa ter conhecimento das consequências para o futuro do RS. Sobre a dívida, na minha visão e pelos estudos que tive acesso, os valores estão superestimados e o Estado não pode abrir mão de poder discutir a dívida na Justiça. É um acordo em que os sete próximos governadores estarão amarrados. As decisões sobre tudo passarão por três pessoas que irão compor o comitê de supervisão do acordo. Isso tira a autonomia do Estado. Se o governador quiser baixar imposto, por exemplo, não poderá”.
É um acordo em que os sete próximos governadores estarão amarrados. As decisões sobre tudo passarão por três pessoas que irão compor o comitê de supervisão do acordo.
Pedro Ruas (Psol)
“Sou contra a adesão. O Regime de Recuperação Fiscal compromete o desenvolvimento do Estado por causa de uma dívida que nós já pagamos. Hoje, se observarmos tudo o que foi pago a mais em função da absurda taxa de juros imposta no contrato original e ainda o que deixamos de receber por causa da Lei Kandir, somos credores da União. Essa adesão não pode ser assinada.”
O Regime de Recuperação Fiscal compromete o desenvolvimento do Estado por causa de uma dívida que nós já pagamos.
Ranolfo Vieira Júnior (PSDB)
“O Regime de Recuperação Fiscal é a alternativa efetivamente disponível para garantir um cronograma paulatino de pagamento das dívidas da União e de precatórios, alinhado a todas as medidas de ajuste fiscal aprovadas pela Assembleia e que já têm dado enormes frutos. A responsabilidade com as contas públicas é condição imprescindível para o desenvolvimento econômico e social."
A responsabilidade com as contas públicas é condição imprescindível para o desenvolvimento econômico e social.
Ricardo Jobim (Novo)
"Lamento que populistas de esquerda e direita queiram melar o acordo de renegociação da dívida. A ação da OAB que questiona o cálculo da dívida deve continuar avançando, mas o RS precisa aderir à renegociação já”.
Lamento que populistas de esquerda e direita queiram melar o acordo de renegociação da dívida.
Roberto Argenta (PSC)
“Acredito que o Estado já pagou a totalidade ou ao menos grande parte de sua dívida. Torna-se inviável governar de outra forma. Sou a favor de iniciativas como a organizada pela OAB/RS. É um compromisso de todos viabilizar o Rio Grande, mas jamais esquecendo que uma boa gestão, menos política e mais austera, independe disso: tem que ser a dinâmica daqui para frente.”
Acredito que o Estado já pagou a totalidade ou ao menos grande parte de sua dívida. Torna-se inviável governar de outra forma.
Perguntas e respostas sobre o regime
O que é o Regime de Recuperação Fiscal?
Programa de ajuste para Estados em situação de desequilíbrio financeiro, permite a concessão de empréstimos para reestruturação das contas e a suspensão do pagamento de dívidas. Em contrapartida, o Estado deve adotar medidas e reformas institucionais para garantir equilíbrio fiscal.
O Estado já aderiu?
Oficialmente, não. Porém, como a Secretaria do Tesouro Nacional (STN) habilitou o Estado a aderir, o Piratini já está obrigado a cumprir algumas vedações e tem até julho para propor um plano de recuperação fiscal com vigência de nove anos. O plano será avaliado pelo Ministério da Economia, com base em pareceres da STN, da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e do Conselho de Supervisão do Regime. Havendo manifestação favorável, o presidente da República poderá homologar o plano, efetivando o ingresso do Estado no regime.
O que é o Conselho de Supervisão?
Colegiado composto por três pessoas, indicadas pelo Tribunal de Contas da União, Ministério da Economia e governo do Estado. Sua função é fiscalizar o cumprimento do plano, fazer recomendações e alertar a União em caso de eventual descumprimento das regras.
O que o Estado ganha, se aderir?
Suspensão por um ano de dívidas com a União ou que tenham o governo federal como garantidor. A partir do segundo ano, o pagamento será retomado gradualmente, com retomada integral a partir do décimo ano.
Suspensão das penalidades impostas pela Lei de Responsabilidade Fiscal para despesas com pessoal e dívida consolidada
Dispensa de exigências fiscais, como repasse em dia de tributos, empréstimos e financiamentos à União como exigência para receber transferências federais voluntárias
Dispensa de requisitos legais para contratação de operações de crédito com garantia da União.
A dívida já não está suspensa?
Sim. Desde 2017, por força de uma liminar obtida pelo Estado no STF, mas o governo desistiu da ação em fevereiro por exigência da União para aderir ao acordo. Embora o STF ainda não tenha se pronunciado sobre a desistência, o governo do Estado diz que hoje a suspensão já é efeito do pedido de adesão ao regime.
Quais as contrapartidas exigidas
Sem demonstração contábil de capacidade financeira permanente, o governo não poderá:
- conceder reajustes a servidores, à exceção da revisão anual ou em obediência a sentença judicial.
- criar cargo ou função, nem alterar estrutura de carreira, que impliquem aumento de despesa.
- contratar pessoal, ressalvadas contratações temporárias ou reposição de cargos de chefia que não acarretem aumento de despesa.
- realizar concurso público que não seja para reposição de quadros.
- criar ou aumentar "penduricalhos" salariais.
- criar despesa obrigatória de caráter continuado.
- adotar medida que implique reajuste de despesa obrigatória.
- conceder, prorrogar ou ampliar incentivo tributário que gere renúncia de receita.
- contratar despesas com propaganda, exceto nas áreas de saúde, segurança, educação e de comprovada utilidade pública.
- propor alteração de alíquotas ou tributos que resulte em redução da arrecadação.