Capaz de acender debates que ultrapassam as divergências entre direita e esquerda, a proposta do governo Eduardo Leite de privatizar a Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan) deve dominar o debate na Assembleia Legislativa no segundo semestre. O tema será decidido pelos deputados estaduais, mas sob influência direta dos 497 prefeitos gaúchos, uma vez que serão diretamente impactados, o que aumenta a complexidade da articulação política.
Ao todo, são três projetos apresentados pelo Palácio Piratini sobre o assunto. O primeiro deles trata da venda da Corsan. Os outros dois criam blocos regionais de saneamento, unindo prefeituras distantes entre si que ficariam sob a mesma gestão de água e esgoto.
— O projeto mais polêmico do semestre será a privatização da Corsan. Não tem nada mais polêmico no Estado do que privatização — avalia o presidente da Assembleia, Gabriel Souza (MDB).
No projeto central, Leite pede autorização da Assembleia para “promover medidas de desestatização” da companhia de água e esgoto. A ideia do governo é vender 70% da companhia, repassando o controle à iniciativa privada. Contudo, há a possibilidade de a Assembleia rejeitar o texto ou limitar a venda a 49% das ações (possibilidade que injetaria dinheiro na companhia, mas manteria o controle com o Estado).
— Estamos longe de dizer se a Assembleia vai encaminhar a possibilidade de venda de 49% ou 70% da companhia — acrescenta o presidente do Legislativo.
O argumento central do Piratini é de que a Corsan precisa cumprir o marco legal do saneamento e, apenas com a privatização, será capaz de ampliar os índices de entrega de água e de tratamento de esgoto. Os contrários apontam que a Corsan é uma estatal que dá lucro e que a privatização vai encarecer as tarifas aos consumidores.
O projeto de privatização corre em regime de urgência na Assembleia e tranca a pauta de votações a partir de 26 de agosto. Como o principal valor da Corsan são os seus clientes, antes de apertar sim ou não para a privatização, os deputados vão votar outro projeto (com regime de urgência), também do governo, que mantém unificados, para fins de saneamento, os 307 municípios que hoje contratam os serviços da Corsan.
Há um terceiro projeto de lei que ronda a polêmica do saneamento na Assembleia, e que afeta outro grupo de municípios. Esse texto cria três novos blocos reunindo as cidades que não têm contrato com a Corsan e que atualmente fazem a gestão própria da água e do esgoto, caso de Porto Alegre.
A principal frente de articulação do Palácio Piratini, neste momento, é diretamente com os prefeitos e suas associações regionais.
— A gente nota que os municípios ainda não conseguiram compreender bem os projetos. Não tem como dizer hoje se o governo do Estado tem os votos necessários. Se houver convencimento, vamos votar — diz o líder do governo, Frederico Antunes.
A Famurs, entidade que representa os municípios, mantém encontros semanais com a participação do governo do Estado. Nessas reuniões, os representantes do Piratini têm tentando esclarecer a necessidade de adequações ao marco regulatório e atrair a simpatia dos prefeitos aos projetos.
— Cada município tem uma realidade diferente. É um debate complexo. Nós, da Famurs, queremos defender os municípios com tarifas justas e que também se mantenham as tarifas sociais. Dos projetos dos últimos anos, é um dos mais importantes para os prefeitos, pois tem um efeito em cascata: investimento em saneamento reduz os custos com saúde — aponta o presidente da Famurs, Eduardo Bonotto.
São os prefeitos e vereadores que dão capilaridade política aos deputados estaduais, abrindo palanques no interior do Estado para as campanhas à reeleição dos parlamentares. É no contato com prefeitos e vereadores que a oposição também percebe o caminho para pressionar a Assembleia a manter a Corsan pública.
— O governo do Estado não detém a titularidade do saneamento. Os municípios detêm. Os deputados deveriam ouvir os prefeitos que os apoiam. O que eu tenho ouvido dos prefeitos é uma grande objeção. Vamos mobilizar prefeitos e câmaras de vereadores. Será que sabem que vai terminar a tarifa social e a tarifa reduzida para microempresas? — aponta Pepe Vargas, líder do PT no Legislativo.
A seu favor na Assembleia, o governo do Estado tem o histórico recente de aprovação da PEC que acabou com a necessidade de plebiscito para vender a Corsan, a Procergs e o Banrisul.
Incerteza sobre nova reforma tributária
A prometida proposta de reforma tributária do governo Leite ainda não atravessou a Praça da Matriz e tem sua nova configuração desenhada em sigilo. Tema polêmico que obrigou o governo a recuar em 2020, é tratado com cuidado pelo Palácio Piratini.
— Alguma coisa de reforma tributária poderá ter, mas no momento não temos informação — resume o líder do governo Leite na Assembleia.
Se nada for feito no sistema tributário, em 2022, último ano do governo Leite, a arrecadação estadual cairá cerca de R$ 1,78 bilhão, uma vez que automaticamente voltam a patamares mais baixos as alíquotas de ICMS. Sem cogitar renovar os percentuais elevados, o Piratini avalia retomar o debate sobre IPVA e ITCD, e reduzir os incentivos fiscais.
— Não é pauta com clima favorável. Agora, revisão de incentivos por decreto do governador, aí é diferente — avalia o presidente do Legislativo.
Recriação do cargo de terceiro sargento da BM
Outro projeto que deve ser enviado pelo governo e movimentar a Assembleia no segundo semestre diz respeito à reestruturação dos cargos de nível médio da Brigada Militar (BM), com a recriação do cargo de terceiro sargento. Como impacta um grande contingente de servidores e gera divergências entre brigadianos, o texto segue em preparação no Palácio Piratini.
— Pode vir do governo do Estado uma alteração no plano de carreira da BM. Está sendo estudada a recriação da função de terceiro sargento — indicou Antunes.
Mais um projeto para adesão ao regime de recuperação fiscal
Pauta persistente, a adesão ao regime de recuperação fiscal (RRF) do governo federal novamente passará pelo crivo dos deputados gaúchos. Com novas regras federais para adesão, os Estados foram instados a adequar as suas legislações próprias.
O novo texto não traz mudanças significativas em relação aos anteriores, já aprovados pela Assembleia. Contudo, a proximidade das eleições de 2022 e a melhora nas contas públicas do Estado devem dar novo fôlego ao debate entre os deputados.
Regras da própria Assembleia entram em debate
A rotina da própria Assembleia também vai entrar em debate no semestre, a partir da proposta de reforma do regimento interno. Capaz de alterar a forma como são votados os projetos, o tema é caro a deputados e seus assessores.
A proposta de reforma prevê, por exemplo, a redução de tempo de debate dos projeto, o que encurtaria as sessões. O alongamento dos debates é uma estratégia comum da oposição nos legislativos.
A reforma também tornaria permanente a possibilidade de participação remota dos deputados para a maioria das atividades.