O ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta prestou depoimento por cerca de oito horas na CPI da Covid nesta terça-feira (14). O médico, que comandou a pasta no início da pandemia do coronavírus, foi a primeira pessoa a ser ouvida pelos senadores no colegiado. Mandetta falou na condição de testemunha, quando há o compromisso de dizer a verdade sob o risco de incorrer no crime de falso testemunho.
Mandetta refutou a alegação de que, sob sua gestão, o Ministério da Saúde orientou a população a não procurar hospitais quando houvesse sintomas leves de covid-19. O questionamento foi feito pelo relator da comissão, Renan Calheiros (MDB-AL). Mandetta classificou a informação como parte de uma "guerra de narrativas".
O ex-ministro disse que o contexto era de início da pandemia, quando não havia muito casos registrados de covid-19 no Brasil, muito menos a transmissão comunitária.
— O que havia eram pessoas em situação de insegurança, pânico — disse Mandetta, citando ainda que a estratégia em epidemias por viroses é evitar aglomerações. — Tenho visto essa máxima ser repetida, e tenho percebido que é mais guerra de narrativa, todas as orientações são para dar entrada pelo sistema de saúde — completou.
O ex-ministro também relatou que o presidente Jair Bolsonaro queria que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) alterasse a bula da cloroquina, com ineficácia cientificamente comprovada, para que o medicamento fosse indicado no tratamento da covid-19. Segundo Mandetta, o pedido foi negado pelo presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres:
— Estive dentro do Palácio do Planalto quando fui informado, após uma reunião, que era para eu subir para o terceiro andar porque tinha lá uma reunião com vários ministros e médicos que iam propor esse negócio de cloroquina, que eu nunca tinha conhecido. Quer dizer, ele tinha esse assessoramento paralelo. Nesse dia, havia sobre a mesa, por exemplo, um papel não-timbrado de um decreto presidencial para que fosse sugerido daquela reunião que se mudasse a bula da cloroquina na Anvisa, colocando na bula a indicação da cloroquina para coronavírus. E foi inclusive o próprio presidente da Anvisa, Barra Torres, que disse não.
Também afirmou que a estratégia de testagem em massa planejada durante sua gestão não foi levada à frente pelos sucessores:
— Em março iniciamos todo o processo, fizemos pool de laboratórios, uma série de parceiros, para construirmos toda a lógica de testagem, disparamos processo de aquisição. E depois soube que essa estratégia não foi utilizada. Era maneira muito clara nossa estratégia, testar, testar. Em março de 2020, iniciamos o processo de compra de 24 milhões de testes. Vimos pararem muitas coisas e não colocarem nada no lugar. A testagem é uma delas.
Mandetta também disse que o Ministério da Saúde nunca foi pressionado por Bolsonaro, mas, sim, "confrontado publicamente", e que essa postura acabou prejudicando o combate à pandemia no Brasil:
— Isso dava uma informação com dúvida à sociedade. Diretamente a mim, pressionado a mudar algo, não. Você tem que ter a unidade, a fala única. O raciocínio não é individual. Ele (o vírus) ataca tudo, a sociedade como um todo. Ele ataca o sistema de saúde a ponto de derrubá-lo. E houve uma ruptura. A medicina ficou completamente dividida.
Mandetta disse também que o Brasil poderia estar em uma situação muito melhor:
— Sim, o Brasil podia mais. Poderíamos estar vacinando desde novembro do ano passado.
Durante o depoimento, Mandetta leu um trecho da carta que entregou a Bolsonaro em março de 2020 com as previsões de mortes que seriam provocadas pela covid-19 no Brasil. Nela, Mandetta "recomendou expressamente" que a Presidência da República revisasse seu posicionamento, acompanhando as orientações do Ministério da Saúde.
— Uma vez que a adoção de medidas em sentido contrário poderá gerar colapso do sistema de saúde e gravíssimas consequências à saúde da população brasileira — dizia a carta entregue a Bolsonaro, segundo Mandetta.
O ex-ministro da Saúde voltou a dizer que alertou o presidente sistematicamente sobre os riscos da doença:
— Tudo o que eu poderia fazer de orientar, "não vai por esse caminho", foi feito, mas ele tinha provavelmente outras pessoas que apontaram que eu estaria errado.
Na avaliação do ex-ministro, entre as teorias que tiveram mais influência sobre o presidente está a de que o Brasil atingiria uma "imunidade de rebanho".
— É muito difícil entender sobre qual teoria (influenciou o presidente), impressão que tenho que tinham algumas teorias com mais simpatia dele, como a que brasileiro iria se contaminar, atingir o quociente de proteção de rebanho. Um entendimento de que as pessoas vão contrair isso "porque moram em favela", "não têm esgoto", "vai morrer só quem tem que morrer", "só está morrendo idoso", embarcaram nessa teoria, impressão que eu tenho é essa — disse Mandetta.
O ex-ministro ainda afirmou que o fato de ele ser um "mensageiro da má notícia" para o presidente acabou por gerar mais distanciamento entre ele e Bolsonaro. Mandetta citou o episódio em que o presidente achou "muito mórbido" que houve alguma regra sobre sepultamento de vítimas da covid:
— E no dia da reunião falei (na reunião em que entregou a carta ao presidente): "o senhor tem que estar preparado para todos os cenários, inclusive de colapso funerário". Foi nesse sentido, logicamente que ele escutou, mas não foi suficiente.
Mandetta foi demitido em 16 de abril de 2020, no início da crise sanitária no Brasil e após longo desgaste na relação com Bolsonaro. O médico defendia o uso de máscaras e era contra a indicação de medicamentos sem eficácia comprovada contra a covid-19.
O ex-ministro Eduardo Pazuello deveria falar à CPI nesta quarta-feira (5), mas o general informou que não comparecerá ao Senado — deve ser ouvido dia 19. Em seu lugar, será ouvido o ex-ministro Nelson Teich, cujo depoimento estava previsto para ocorrer após a fala de Mandetta, mas será transferido em razão do horário.