Um dos mais reconhecidos sociólogos e cientistas políticos do país, o mineiro Bolívar Lamounier, 77 anos, não acredita que a democracia brasileira esteja a caminho de uma ruptura, mas vê uma “estabilidade medíocre” em que o país se encontra estagnado por razões como as “noções autoritárias” do presidente Jair Bolsonaro, os “altos e baixos” do Supremo Tribunal Federal (STF) e uma esquerda incapaz de se mobilizar de forma coordenada.
Experiência não falta a Lamounier para tentar entender e explicar o Brasil. Em 1985, o doutor em Ciência Política pela Universidade da Califórnia (EUA) foi nomeado membro da Comissão de Estudos Constitucionais criada pela Presidência da República para preparar o anteprojeto da Constituição que seria promulgada três anos mais tarde. Foi também o primeiro diretor-presidente do Instituto de Estudos Econômicos, Sociais e Políticos de São Paulo (Idesp) e, em 1997, foi eleito para ocupar uma cadeira da Academia Paulista de Letras. Para Lamounier, embora o Congresso seja um dos alvos preferenciais da desconfiança dos brasileiros, a casa é um “pilar central” para preservar a estabilidade e a democracia nacionais em um ambiente agravado pela pandemia de coronavírus – cujo combate, na avaliação do especialista, foi “sabotado” por Bolsonaro.
Confira, a seguir, a entrevista concedida por e-mail (por solicitação do entrevistado).
O Brasil terminou 2020 de forma mais ou menos promissora do que começou o ano, em termos políticos e econômicos? Por quê?
A situação atual não me parece mais promissora do que a do começo do ano passado, não. Parece-me pior. Por causa da pandemia. Já temos vacinas aprovadas, mas daí até a vacinação em massa haverá um longo caminho para voltarmos à normalidade. Com os auxílios emergenciais, o ajuste fiscal ficou mais difícil. Estima-se que, no momento, a renda de um terço dos indivíduos está limitada a esses auxílios. No final de 2019, tínhamos as reformas trabalhista e da Previdência aprovadas, mas elas não foram suficientes para impulsionar o crescimento da economia. E o presidente é o mesmo, errático, para dizer o mínimo.
Como o senhor avalia a resposta nacional à pandemia de coronavírus, em termos de articulação política nos diferentes níveis de governo, de resposta das instituições e especificamente do presidente Jair Bolsonaro?
A resposta é razoável. Poderia ser muito melhor, se o governo federal tivesse prestado mais atenção ao que a prescreve o artigo 30 da Constituição. Ali está dito que a saúde é atribuição dos Estados e municípios, com “assistência técnica e financeira” da União. E nem poderia ser de outra forma, pois as pessoas não adoecem na União; adoecem nos Estados e municípios onde residem. Segue-se que a elaboração dos planos e a implementação das ações de combate, notadamente no caso de doenças transmissíveis, é atribuição local, não federal. Foi isso o que determinou o Supremo Tribunal Federal. O Congresso também agiu corretamente, aprovando os meios financeiros necessários. Contudo, o presidente Bolsonaro, de olho na reeleição, sistematicamente se recusou a observar essa divisão de funções. Não só se recusou como sabotou o quanto pôde o combate à covid-19, primeiro subestimando-a e chamando de “gripezinha”, induzindo a sociedade a não cumprir as determinações das autoridades da saúde e agindo ele mesmo contra elas, fomentando aglomerações e frequentemente recusando-se a usar a máscara. Adota a mesma postura negativista em relação às vacinas, como se tivesse conhecimento do assunto.
Apesar de todas as polêmicas, o presidente mantém uma fiel base de apoiadores, superior a um terço da população. Em que se sustenta esse apoio, e o senhor crê que seja de fato inabalável? O fim do auxílio emergencial pode trazer impacto político ou alterar os índices de aprovação do governo?
Um terço da população é o tamanho do antipetismo, sem o qual ele não teria conseguido se eleger. Para manter apoio no Congresso, recorreu ao clássico “estelionato eleitoral”. Em vez de erradicar a “velha” política, como prometera na campanha, trouxe-a para dentro do governo. Hoje, seu apoio é o chamado “centrão”. O fim do auxílio emergencial com certeza poderia corroer a popularidade do presidente, e é por isso, principalmente, que ele investe na polarização política e na virulência verbal, tendo em vista manter o clima de tensão política que o levou ao Planalto. Salta aos olhos que o presidente não tem perfil de pacificador e muito menos interesse em pacificar.
Para manter apoio no Congresso (Bolsonaro), recorreu ao clássico 'estelionato eleitoral'. Em vez de erradicar a 'velha' política, como prometera na campanha, trouxe-a para dentro do governo. Hoje, seu apoio é o chamado 'centrão'.
O senhor vê algum risco real à democracia no Brasil ou à solidez das instituições diante do cenário atual?
Não vejo risco de rompimento da ordem constitucional, mas não tenho dúvida de que estamos vivendo um retrocesso na qualidade da democracia. Um rompimento efetivo dependeria das Forças Armadas, que a meu juízo não chegarão a tal desatino. Acho difícil um general golpear as instituições sob o comando de um capitão excluído da carreira militar por mau comportamento.
Como o senhor analisa o desempenho do Supremo Tribunal Federal em meio à conturbação política do país?
O Supremo tem tido altos e baixos. Acertou, no meu entender, ao firmar o princípio federativo como base para o combate à pandemia. As pessoas não adoecem nem morrem na União, e sim nos Estados e Municípios. Lamentável é a orientação que o Supremo adotou no combate à corrupção, dificultando-o, quando sua missão deveria ser fortalecê-lo vigorosamente. Acrescente-se, no lado negativo, o histrionismo de alguns ministros, o que obviamente não corresponde à liturgia do cargo.
Na sua avaliação, qual o principal recado deixado pelos resultados das eleições municipais de 2020?
O recado não poderia ser mais claro: o apoio do presidente não ajudou e muito provavelmente prejudicou candidatos. Veja-se o caso de São Paulo. O prefeito Bruno Covas (PSDB) se reelegeu e Guilherme Boulos (PSOL) foi ao segundo turno, sobrepujando Russomano (Republicanos), o apoiado de Bolsonaro.
O recado (das eleições de 2020) não poderia ser mais claro: o apoio do presidente não ajudou e muito provavelmente prejudicou candidatos. Veja-se o caso de São Paulo.
Ainda falta muito para as eleições de 2022, mas como o senhor avalia até o momento a disputa pela presidência? O senhor crê na possibilidade de que se forme uma frente mais ampla de partidos de centro e esquerda para disputar a presidência?
Até o momento, é difícil acreditar em surpresas. Tudo faz crer que a disputa será entre João Dória (PSDB) e Jair Bolsonaro (sem partido). Salvo uma inesperada ressurreição de Lula, a esquerda continuará sem protagonismo relevante. Dividida em várias siglas, sem credibilidade e sem capacidade de chegar a um programa comum.
Que expectativa o senhor tem para o país para 2021 em termos políticos? Maior ou menor estabilidade?
Com a sociedade desmobilizada pela pandemia, o mais provável é que tenhamos mais do mesmo, ou seja, uma estabilidade medíocre, ocasionalmente arranhada pelo desnorteio das próprias autoridades institucionais.
E em termos econômicos? Será possível retomar o crescimento de forma sustentada antes de encaminhar uma solução para a questão da pandemia? O senhor vê possibilidade de se encaminharem reformas econômicas e administrativas abrangentes neste ano?
O cenário econômico poderá melhorar um pouco, caso se concretize uma entrada relevante de investimentos estrangeiros. Sem controlar a pandemia, não vejo chance de crescimento sustentado. O próprio ministro Paulo Guedes declarou isso recentemente. E não é só da pandemia que se trata. Precisamos de reformas enérgicas e abrangentes, a começar pela reforma política, que não temos condições nem de discutir enquanto o presidente for Bolsonaro.
Com a sociedade desmobilizada pela pandemia e um presidente imbuído de noções claramente autoritárias, hoje o Congresso é o pilar central da estabilidade democrática do país.
O Brasil segue com índices ruins em áreas como educação e igualdade econômica. Será possível desenvolver o país sem resolver antes esses nós?
“Índices ruins” é bondade sua. Índices catastróficos. As estatísticas comparativas elaboradas pelo Programa Internacional de Avaliação do Desempenho Estudantil (Pisa) mostram que cerca de 70% das pessoas maiores de 15 anos têm desempenho inferior ao que é internacionalmente esperado em matemática, 60% em ciências e 50% em nosso próprio idioma, ou seja, no conhecimento do português. Não temos uma classe média robusta, assentada na pequena e na média propriedade, urbana e rural. E temos uma multidão de desempregados nunca vista no país. Que igualdade econômica se pode antever num país como esse? Por isso, temos insistido em que estamos em retrocesso. Um retrocesso que a maioria parece não perceber, ou não quer perceber, mas retrocesso, sem dúvida. Sem falar na crescente agressividade da criminalidade violenta. Há poucos dias, tivemos bandos armados atacando e aterrorizando cidades de Santa Catarina, São Paulo e Pará.
Qual a importância da definição dos novos presidentes da Câmara e do Senado no contexto atual? Como o senhor vê a formação do bloco suprapartidário para fazer oposição a qualquer candidato apoiado por Bolsonaro no Congresso? Pode ter outros desdobramentos?
Com a sociedade desmobilizada pela pandemia e um presidente imbuído de noções claramente autoritárias, hoje o Congresso é o pilar central da estabilidade democrática do país. A maioria dos cidadãos não compreende bem isso, nutre-se de uma hostilidade irracional ao parlamento, mas essa é a realidade. A garantia da democracia repousa, por um lado, na prudência das Forças Armadas e, por outro, numa atitude altiva e afirmativa por parte do Congresso.