Samuel Pessôa está preocupado com o cenário que se avizinha para a economia nacional. Uma das vozes mais respeitadas no debate da área, o economista de 57 anos entende que o país precisa retomar, em 2021, a agenda de corte de gastos públicos. Na visão de Pessôa, o avanço de projetos dessa natureza é necessário diante do buraco nas contas do governo federal. O ajuste fiscal, conforme ele, também é uma das condições para tranquilizar investidores e frear o recente aumento da inflação.
Nesta entrevista, o pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre) avalia que o presidente Jair Bolsonaro teve dificuldade para reconhecer a crise do coronavírus e liderar o país no combate ao problema sanitário. E considera “uma decepção” a postura do Ministério da Economia, até aqui, ao tratar de pautas como privatizações, que patinaram ao longo deste mandato. A seguir, veja os principais trechos da conversa, realizada por telefone.
Depois de registrar queda histórica, o Produto Interno Bruto (PIB) teve melhora no país. Conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a alta foi de 7,7% no terceiro trimestre, em relação ao segundo. Como o senhor descreve esse cenário para a economia nacional?
As economias do mundo todo sofreram um choque único, o da epidemia. O choque produziu forte queda da atividade econômica no segundo trimestre. A partir do terceiro, as economias retomaram em um padrão muito parecido. A indústria e o varejo apresentaram recuperação em V (rápida reação após queda intensa). Por outro lado, o setor de serviços teve recuperação só de metade das perdas. O setor de serviços inclui serviços prestados a empresas, que foram estimulados pela indústria, porque voltou de maneira forte. A questão é que os serviços ligados às famílias, como turismo, alimentação fora do domicílio, entretenimento e cultura, voltaram muito pouco. Estão bem contidos. A economia brasileira, neste quarto trimestre, deve estar rodando 3,5% abaixo do mesmo período do ano passado. Mas alguns setores já estão no mesmo nível. Ou seja, a queda de 3,5% é concentrada essencialmente em serviços da administração pública, principalmente educação e saúde, e no ramo de outros serviços. Esse setor engloba atividades que mencionei há pouco, como turismo, entretenimento e alimentação fora do domicílio. Houve uma pancada forte no PIB no segundo trimestre, seguida de uma recuperação forte no terceiro. Agora, a economia vai andar meio de lado.
Por que a economia vai “andar meio de lado”?
Porque a recuperação agora está nas mãos da normalização do problema sanitário. O que dava para fazer, sem que a pandemia passasse, já foi normalizado no terceiro trimestre. Pode até crescer mais um pouco no quarto. Mas a volta da economia, agora, depende da recuperação dos setores diretamente afetados pelo distanciamento social. Portanto, ninguém sabe o que vai acontecer. Ninguém tem certeza do que vai acontecer com a epidemia. Converso os epidemiologistas, e eles também não sabem. Falar mais do que isso é pura especulação. A gente sabe que está no meio de uma segunda onda forte, incluindo os Estados do Sul. Provavelmente ocorram menos mortes na segunda onda do que na primeira. Foi assim na Europa. Mas não tenho a menor ideia de quando isso vai passar. E não está claro qual será o cronograma de vacinação. A economia se recuperou bem, mas, daqui para a frente, enquanto não houver solução eficiente para o problema sanitário, vamos andar de lado.
Além das incertezas relacionadas à pandemia, o que mais pode pesar na largada de 2021? Quais são os outros desafios na economia?
O principal desafio é o Congresso aprovar um projeto de Lei Orçamentária Anual que construa um orçamento compatível com o teto dos gastos. Ou seja, que a gente consiga virar a página do orçamento de guerra, dos gastos excessivos com a epidemia, aterrissando em um orçamento de normalidade. O Brasil foi o país da América Latina que mais gastou na proporção com o PIB. Não temos espaço fiscal para continuar gastando.
Ou seja, não há possibilidade de novas medidas de estímulo à economia em 2021?
Olha, aí é o Congresso que tem de decidir. Estamos no meio de um processo de aceleração inflacionária que preocupa. Sem uma consolidação fiscal, e se a taxa de câmbio não voltar um pouco (o dólar está acima de R$ 5), vamos continuar com aceleração na inflação. Aí o Banco Central teria de subir a taxa de juros (hoje em 2% ao ano, mínima histórica). Seria pior ainda para a recuperação da economia. O que for feito, tem de ser com muito cuidado. O Congresso já exagerou na mão. Agora, pode gastar um pouco mais, desde que aprove um conjunto grande de medidas que controlem gastos futuros. Pode fazer isso.
A recuperação econômica agora está nas mãos da normalização do problema sanitário. O que dava para fazer, sem que a pandemia passasse, já foi normalizado no terceiro trimestre. Pode até crescer mais um pouco no quarto. Mas a volta da economia, agora, depende da recuperação dos setores diretamente afetados pelo distanciamento social. Portanto, ninguém sabe o que vai acontecer.
Quais seriam as medidas para frear as despesas nos próximos anos?
É preciso criar mecanismos para controlar o crescimento dos gastos obrigatórios do Estado brasileiro. Ou seja, aqueles gatilhos do teto de gastos precisam ser melhor definidos. Tem um projeto do deputado Pedro Paulo (DEM-RJ) que está na Câmara desde o quarto trimestre de 2018. Estabelece uma série de gatilhos que seriam automaticamente disparados quando o gasto ultrapassasse certo limite. Então, nesses casos, não seria possível, por exemplo, fazer concursos, dar aumento de salários ou progressão de carreira para servidores, criar desoneração de impostos. São coisas desse tipo, dessa natureza.
O governo federal encaminhou neste ano a primeira etapa do projeto de reforma administrativa, que afetaria futuros servidores públicos. Como o senhor avalia essa discussão? O projeto é interessante?
A reforma administrativa é importante, bem como a tributária. Mas o fundamental, hoje, é ter medidas que estabilizem os gastos públicos obrigatórios da União e dos Estados. São esses gatilhos que mencionei antes. A gente pode até imaginar mais gatilhos. De novo, temos de achar mecanismos para controlar o crescimento do gasto obrigatório.
O auxílio emergencial sustentou a renda de parte da população durante a pandemia. Nos últimos meses, o governo federal ensaiou a criação do Renda Cidadã, que substituiria o Bolsa Família. Em meio a restrições nas contas públicas, é possível ampliar a base atendida pelo Bolsa Família?
No médio prazo, sim. Porque a arrecadação de impostos no Brasil é alta. A questão é que o Brasil é um país que gasta muito. A carga tributária no Brasil é a maior da América Latina. O senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) encaminhou um projeto com esse teor. Parece muito adequado (a proposta prevê substituir o Bolsa Família por um plano de redução da pobreza). É um bom início para a discussão.
Com a alta nos preços de alimentos, a inflação ganhou corpo nos últimos meses. Mas parte dos economistas entende que seria um choque momentâneo. Na sua visão, qual é o cenário para a inflação?
Tenho 57 anos. Nasci em 1963. Inflação é um tema que me preocupa muito. É verdade que a aceleração recente foi fruto de um conjunto de choques. O primeiro foi de proteína animal. Vem desde 2019, associado à elevação no preço da carne suína, que ocorreu com a peste suína africana na China. Ao longo do primeiro semestre de 2019, 40% do rebanho de suínos da China foi abatido. Os chineses começaram a comprar carne suína do mundo todo, e o preço subiu muito. Depois, passaram a comprar todos os tipos de carne: bovina, de peixe, caprina, aves. E o preço da proteína explodiu. Isso bateu na nossa inflação. Esse choque vai ser devolvido no ano que vem e em 2022. É um choque mais curto, porque dá para reconstruir os rebanhos na China. Além disso, houve uma seca no final de 2019 e no começo deste ano. Pegou a Região Sul, e houve quebra de safra de arroz. Gerou inflação forte. Um terceiro choque é nas cadeias produtivas, associado à indústria de transformação. No segundo trimestre de 2020, houve uma parada na atividade produtiva em razão da pandemia. A volta, no terceiro trimestre, foi mais rápida do que se imaginava. Então, faltou estoque, e a indústria não conseguiu atender a uma parte dos pedidos. Ao mesmo tempo, o varejo não conseguiu renovar estoques. Essa desorganização das cadeias produtivas gerou um choque de inflação que está em curso. Há um quarto choque, o cambial. Esse é o que mais preocupa.
O país teve a reforma trabalhista, melhora na governança do BNDES. Teve, também, a aprovação do marco regulatório do saneamento básico, a aprovação da reforma da Previdência. Há um conjunto de iniciativas que vão na direção de melhorar a eficiência produtiva da economia brasileira. Se a gente conseguir eliminar a incerteza fiscal, pode engatar um ciclo de crescimento mais forte.
Por quê?
A taxa de câmbio se desvalorizou muito neste ano (o real perdeu valor frente ao dólar), afetando a inflação. Você pode dizer: “Samuel, o câmbio está se desvalorizando desde janeiro de 2018. Não estava pegando a inflação. Por que pegou só agora?”. É uma pergunta pertinente. A resposta é: o que produz repasse cambial para a inflação é menos a desvalorização por si só e mais a natureza da desvalorização. O Brasil é um grande exportador de commodities (matérias-primas). Em geral, existe uma gangorra entre variação das commodities no mercado internacional e variação da nossa moeda. Quando o preço das commodities sobe, o país fica mais rico, o real se aprecia, se fortalece. Quando a cotação das commodities cai, o Brasil perde renda, e a moeda se deprecia, se enfraquece. Essa gangorra faz com que as variações dos preços das commodities não interfiram na nossa inflação. As commodities aumentam de preço, geram pressão inflacionária, mas o câmbio se valoriza e gera uma pressão desinflacionária. Ou seja, os dois efeitos, mais ou menos, se cancelam. Então, não há tanto impacto inflacionário. O que aconteceu neste ano é que, em razão dos riscos associados à pandemia, o câmbio andou numa direção contrária em relação àquela em que normalmente anda. A China se recuperou rapidamente, gerando elevação nos preços das commodities. Seria natural que o real se fortalecesse, mas, nesse período, ele se enfraqueceu. Aí estamos vivendo um choque inflacionário por dois motivos. O primeiro é o fato de as commodities estarem mais caras. O segundo é a desvalorização do câmbio (dólar mais forte). Ora, se não resolvermos a incerteza fiscal, que movimenta o câmbio, teremos nova rodada de desvalorização. Essa nova rodada de desvalorização não será produzida pelas commodities, mas, sim, por uma crise de confiança. Esse tipo de desvalorização gera repasse inflacionário muito grande.
Como contornar a disparada dos preços? Por meio do ajuste fiscal?
É necessário cortar o crescimento automático do gasto público. Tudo o que puder ser feito para reduzir o gasto público é importante.
Com mais pessoas à procura de oportunidades, a taxa de desemprego vem subindo ao longo da pandemia no país. Qual é o cenário para o mercado de trabalho daqui para a frente?
O cenário do mercado de trabalho depende da recuperação da atividade econômica. Como discutimos antes, a recuperação da atividade, a partir de agora, depende de uma solução mais definitiva para o problema da epidemia.
Ou seja, o cenário é de completa incerteza?
É. Tem uma incerteza grande. Não sabemos como será a evolução da segunda onda de casos de coronavírus. Não sabemos se vai passar rapidamente ou não.
O senhor elencou diferentes desafios para a economia brasileira. Quais seriam os pontos positivos no atual momento?
A gente vem, desde o governo Michel Temer, em um esforço na agenda de reformas. Sabemos que há uma defasagem entre fazer reformas e colher os ganhos de eficiência. O país teve a reforma trabalhista, a melhora na governança do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Teve, também, a aprovação do marco regulatório do saneamento básico, a aprovação da reforma da Previdência. Há um conjunto de iniciativas que já foram aprovadas e que vão na direção de melhorar a eficiência produtiva da economia brasileira. Há muito a ser feito. Mas, se a gente conseguir eliminar a incerteza fiscal, pode engatar um ciclo de crescimento mais forte.
Como o senhor avalia a atuação do governo federal no combate aos efeitos da pandemia, não apenas na área econômica?
É cedo ainda para fazer essa análise. É muito difícil entender a forma como os países reagiram à pandemia. É muito difícil entender o que fez com que alguns países fossem tão pouco atingidos, e outros, tão afetados. Sabemos que os asiáticos foram melhores do que os europeus e os americanos. É uma questão a entender: por que fomos tão piores? Por que não conseguimos enfrentar uma pandemia com a mesma eficiência dos asiáticos? Também me parece que a dificuldade que Jair Bolsonaro teve para reconhecer o problema, tomar pé da situação, antecipar-se aos fatos e liderar a sociedade nessa crise sanitária gerou efeitos ruins. Se tivéssemos ação mais coordenada, menos pessoas teriam morrido. Provavelmente, o impacto da epidemia na atividade econômica teria sido menor, apesar de o Brasil não estar tão ruim nessa métrica. O PIB do Brasil vai cair 4,5% (em 2020). Várias países da América Latina vão ter queda maior do que a nossa. Ainda não é possível fazer uma avaliação mais profunda dos diferentes padrões de reação. É difícil saber quais foram as melhores estratégias e como a gente faz para se preparar para outros eventos dessa natureza. Mas me parece que a reação do Executivo nacional foi muito ruim. Demorou para liderar, demorou para reconhecer o problema. Deixou certo vácuo, que foi ocupado pelo Congresso, pelos Estados e municípios. E o Congresso produziu um auxílio emergencial caro demais, que agora está pesando.
A equipe econômica do governo Bolsonaro foi eleita com uma agenda de reformas e privatizações. Passados quase dois anos deste mandato, como o senhor avalia a atuação do ministério coordenado por Paulo Guedes?
O grande destaque até aqui foi a reforma da Previdência. Mas me parece que resultou mais de ações do Congresso do que de uma disposição muito forte do Executivo, apesar de o Executivo ter ajudado. Foi a reforma aprovada até agora. De resto, a impressão é de uma grande decepção. Não podemos ser muito rigorosos neste ano por conta da pandemia, que ninguém esperava. A economia estava em uma trajetória lenta, mas de recuperação. Havia espaço para retomada neste ano, sim. Mas aí veio a pandemia e pegou todos de surpresa. Mesmo assim, acho que, na área das privatizações, o governo é uma decepção. Tem feito muito pouco. O ministro fala muito, mas a impressão é de que a capacidade de gestão não é muito boa no Ministério da Economia. Acho ele (Guedes) eloquente, articulado. Ouvi-lo é prazeroso. Mas a impressão é de que há problema de gestão. Pouca coisa andou.