Ao adotar moderação inédita desde a posse, o presidente Jair Bolsonaro reduziu os atritos externos, mas ainda não conseguiu apaziguar o constante litígio entre a ala militar e a corrente ideológica do Planalto. O desequilíbrio na correlação de forças enfureceu o núcleo mais polêmico da Esplanada, para quem o capitão foi sequestrado pelos generais, que passaram a ditar os rumos da gestão. Enquanto brigam entre si por poder e influência, os grupos têm apenas uma preocupação comum: não desagradar ao centrão, cujo alicerce no Congresso é considerado fundamental para evitar o colapso do governo.
A mudança de postura de Bolsonaro se deu após sucessivos apelos dos militares, mas só ocorreu com a prisão do ex-assessor Fabrício Queiroz. Até então, o presidente insistia na tática do confronto, embora sitiado por decisões judiciais que atingiam aliados barulhentos como o blogueiro Allan dos Santos, dono do site Terça Livre, e a ativista Sara Geromini, líder do grupo 300 do Brasil.
No mesmo dia da prisão de Queiroz, um constrangido Bolsonaro aparecia no vídeo em que Abraham Weintraub anunciava sua demissão do Ministério da Educação. Era uma vitória dos generais e um abalo nas hostes olavistas, como são chamados os seguidores de Olavo de Carvalho, o guru filosófico do governo. Sem Weintraub na Educação, o grupo perdeu seu aríete ideológico, uma vez que a pasta tem um dos maiores orçamentos da Esplanada e formula políticas com enorme poder de irradiação social.
O episódio marcou uma virada no governo. Desde então, Bolsonaro nunca mais participou das manifestações dominicais que pediam o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal (STF), diminuiu as conversas informais com populares no Palácio da Alvorada e desidratou as falas provocativas. Os artífices da guinada foram os generais Braga Netto (Casa Civil) e Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo).
Além de convencerem Bolsonaro a suavizar o discurso, eles atraíram o centrão, hoje com mais de 300 cargos na burocracia estatal, e usaram o Diário Oficial para reduzir o radicalismo do governo. As nomeações de radicais, mesmo para cargos de escalões inferiores, passaram a ser sistematicamente barradas na Casa Civil. No dia seguinte, o responsável pela indicação recebia um telefonema do Planalto. O interlocutor justificava o veto com alguma razão técnica, mas imediatamente sugeria um substituto com currículo mais vistoso, na maioria das vezes algum militar. Dessa forma, os generais ampliaram sua base na Esplanada ao mesmo tempo em que minaram o território inimigo.
As indicações de olavistas só têm surtido efeito quando avalizadas previamente por Bolsonaro e por ora estão restritas a poucas pastas, como a Educação e a Secretaria Especial de Cultura. Das 12 vagas do Conselho Nacional de Educação, por exemplo, metade foi ocupada nas últimas semanas por pessoas indicadas por Weintraub. Na Cultura, o novo titular, Mario Frias, tem aproveitado a interlocução direta com o presidente para ampliar o conservadorismo da política cultural.
Com Bolsonaro ainda mais quieto em razão do confinamento forçado pela covid-19, os militares se sentiram à vontade para desgastar outros expoentes do olavismo, como os ministros Ernesto Araújo (Relações Exteriores) e Ricardo Salles (Meio Ambiente). Araújo tem sobrevida garantida até as eleições nos Estados Unidos, em novembro. Em caso de derrota de Donald Trump, sua queda é dada como certa. Já Salles se tornou um bastião da resistência bolsonarista, a despeito da pressão do empresariado e da comunidade internacional.
Irritados com a perda de espaço e de influência sobre o presidente, os olavistas reagiram e a relação com os militares beirou à combustão, com ataques de ambos os lados. A diferença está no modo de agir. Enquanto os militares atuam em silêncio, atingindo os rivais nos bastidores, os ideológicos gritam nas redes sociais, na tentativa de desqualificar o núcleo fardado.
No dia 14 de julho, um dos principais discípulos de Olavo de Carvalho no Planalto, o assessor especial Filipi Martins, reconheceu no Twitter "o enfraquecimento do núcleo político-ideológico do governo, que antes dava unidade ao projeto e sentido às escolhas". A partir desse diagnóstico, ele enxerga na assunção dos militares o crescimento de um "neutralismo tecnocrático incapaz de desafiar a ideologia dominante". Para Filipi, "a única forma de reverter a situação" é "proteger quem colabora" com o governo e "resgatar seu discurso conservador".
O discurso funcionou como senha para uma enxurrada de ataques nas redes sociais. Todavia, alguns movimentos são paradoxais. Às 9h47min de quarta-feira (15), Allan dos Santos reclamou no Twitter que o governo cedeu ao demitir Weintraub e agora se via pressionado a exonerar o general Eduardo Pazuello do Ministério da Saúde. "Como viram que a pressão funcionou com Weintraub, tentaram retirar Ernesto Araújo, Paulo Guedes e Ricardo Salles. A bola da vez é Pazuello. Quem cede uma vez será pressionado sempre", escreveu o blogueiro.
Às 17h15min do mesmo dia, o próprio Allan atacou Pazuello, inconformado com o fato de o ministro ter conversado ao telefone com o ministro do STF Gilmar Mendes após o magistrado ter dito que o Exército estaria se associando a um genocídio na política de combate à covid. "Quando alguém te chamar de genocida, ligue para o ofensor e dialogue sem exigir que ele peça desculpas. Que lição esse general deu. Espero que meu filho nunca escute o Pazuello", publicou.
Em geral, o grupo reclama que os militares assumiram o controle do governo, embora não tenham feito campanha para Bolsonaro, tampouco lutem pela pauta conservadora. Allan costuma reclamar da suposta tibieza verde-oliva em exonerar "5 mil petistas" que estariam atuando no serviço público federal em Brasília. Levantamento do TCU, contudo, mostrou que há 6.157 militares ocupando cargos na gestão Bolsonaro.
Nem ministros civis e ligados diretamente a Bolsonaro como Jorge Oliveira (Secretaria-Geral) e André Mendonça (Justiça) são poupados. Conforme levantamento da consultoria Quaest, juntos eles receberam 54,7 mil menções no Twitter entre 1º de junho e 8 de julho — a cada três citações, duas eram negativas. Outro alvo recente é a advogada Karina Kuffa. O trio entrou na mira após servir como interlocutor do Planalto no armistício firmado com o STF e por se recursar a sair em defesa dos radicais presos, como Sara Geromini e o blogueiro Oswaldo Eustáquio.
Na Esplanada, há quem veja as digitais da comunidade de informações do Exército nas operações da Polícia Federal contra os ativistas. Os generais que despacham no Planalto ignoram as suspeitas e trabalham agora para garantir uma base parlamentar confiável para o período pós-pandemia.
Por ação de Ramos, quatro dos vice-líderes do governo na Câmara foram substituídos por deputados mais cordatos no trato político. Entre os defenestrados estão Otoni de Paula (PSC-RJ) e Daniel Silveira (PSL-RJ), ambos na mira da PGR por ataques ao STF. Um dos novos vice-líderes, o gaúcho Maurício Dziedricki (PTB-RS) foi escolhido num gesto claro de agrado do Planalto ao presidente da sigla, Roberto Jefferson, que na quinta-feira (16) dava entrevista ao canal de Allan dos Santos no Youtube. Ao cabo de toda briga, olavistas e militares têm um ponto de convergência: o pragmatismo.