Entre as ações de combate ao coronavírus no país, o presidente Jair Bolsonaro decidiu suspender prazos de resposta e negar a possibilidade de recursos em pedidos feitos via Lei de Acesso à Informação (LAI). A decisão, que envolve os órgãos e entidades da administração pública com servidores sujeitos a quarentena ou a trabalho remoto, é alvo de críticas entre especialistas. O temor é de que as restrições abram brecha à falta de transparência e impeçam o controle social dos atos do governo.
Publicada na noite da última segunda-feira (23), a Medida Provisória nº 928 começa dizendo que serão atendidas “prioritariamente” as solicitações de dados relacionadas a “medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública”. Mas, na sequência, o texto informa que “ficarão suspensos os prazos de resposta” (de 20 dias, prorrogáveis por mais 10) nos setores em que os agentes “estejam sujeitos a regime de quarentena, teletrabalho ou equivalentes e que, necessariamente, dependam de: 1) acesso presencial de agentes públicos (...) ou 2) agente público ou setor prioritariamente envolvido com as medidas de enfrentamento da situação”.
A MP define, ainda, que “não serão conhecidos os recursos interpostos contra negativa de resposta” e que as demandas só poderão ser encaminhadas via internet (veja os detalhes no fim do texto). Até agora, o cidadão que tivesse o requerimento negado ou que considerasse o retorno insuficiente tinha o direito de recorrer ao órgão questionado. Se não ficasse satisfeito, podia encaminhar a questão à Controladoria Geral da União (CGU) e à Comissão Mista de Reavaliação de Informações.
Ainda que o objetivo do governo federal seja resguardar os servidores públicos da exposição à covid-19, representantes de entidades e pesquisadores repudiam a maneira como a MP foi editada. Na avaliação da gerente de projetos da ONG Transparência Brasil, Marina Atoji, o texto é contraditório ao priorizar temas relacionados à pandemia e, ao mesmo tempo, paralisar prazos de retorno.
– Obviamente, existem respostas que só poderão ser dadas se o servidor estiver presente e é evidente que ele deve ser preservado. O problema é que, da forma como foi redigida, a MP é contraditória. Não há clareza sobre quais pedidos terão prazo de resposta suspenso. Na prática, vai parar tudo. O mais grave é que vivemos um momento em que as pessoas precisam de informações. A MP abre uma brecha enorme. Quem garante que, se o governo entender que não é conveniente divulgar determinado dado, não usará isso como justificativa? - questiona Marina.
Autor do livro Lei de Acesso à Informação: reforço ao controle democrático, Fabiano Angélico endossa a análise. Segundo ele, a medida é "inconstitucional" por contrariar o princípio da publicidade, é "ilegal" por descumprir a LAI e é "desnecessária" por já haver mecanismo de proteção aos servidores na legislação vigente.
– No contexto extraordinário que estamos vivendo, é claro que existem situações excepcionais. Talvez uma justificativa pudesse ser a de proteger os próprios servidores, pelo fato de que estão de quarentena ou em teletrabalho. Realmente pode ficar difícil buscar alguma informação que esteja armazenada em formato físico. Mas é desnecessária (a edição da MP), porque a própria LAI e o decreto federal que a regulamenta já apontam hipóteses em que o Estado e os servidores podem se proteger de situações absurdas - pondera Angélico, doutorando em Administração Pública e Governo pela Fundação Getulio Vargas (FGV).
Conforme o consultor, o artigo 13 do decreto que regulamenta a LAI indica que pedidos "desarrazoados ou desproporcionais" não serão atendidos.
– Então, se a intenção era proteger o servidor público, aquele que está em teletrabalho e em dificuldades de deslocamento, era muito simples: bastaria responder o pedido usando o artigo 13 do decreto, dizendo que a informação solicitada está arquivada em um repositório físico, que tem uma legislação sobre estado de calamidade e que não é razoável que haja deslocamento - complementa o pesquisador.
O principal temor é de que esse episódio acabe por desencadear retrocessos e quebra de confiança.
– Esse é um momento de a gente construir relações de confiança mútua entre Estado e sociedade. Que a gente possa, por exemplo, confiar nos dados que o Estado brasileiro está fornecendo ao cidadão, nas ações que estão sendo tomadas para conter a pandemia. Essa MP, que foi feita sem nenhum debate com os especialistas e com a sociedade, está no caminho da desconfiança - lamenta Angélico.
Coordenadora do programa de acesso à informação da ONG Artigo 19, Joara Marchezini concorda com avaliação e reforça a preocupação diante do que está por vir. Especialista em Direitos Humanos e Democracia pela Universidade de Coimbra, em Portugal, Joara adverte para o risco de que a MP acabe por estimular “mais fake news e mais desinformação”.
– As consequências dessa MP serão gravíssimas, primeiro porque você cria um mecanismo paralelo de funcionamento à lei. Em segundo lugar, menos informação circulando num período de pandemia prejudica o combate ao vírus e o entendimento da opinião pública sobre o que o governo está fazendo. Vale lembrar que quando se decreta estado de emergência ou calamidade os procedimentos de licitação são alterados. A gente deveria ter mais transparência sobre eles e não menos - ressalta Joara.
Quando entrou em vigência, em 16 de maio de 2012, a LAI surgiu com a promessa de abrir arquivos nas três esferas da administração pública, em todos os poderes. Passou a ser direito de qualquer cidadão pedir dados sem a necessidade de se justificar e com prazo para a resposta obrigatório. Repartições públicas tiveram de criar estruturas próprias para atender as solicitações e a manter sites com conteúdo aberto, acessível e detalhado.
O que diz a MP 928 sobre a LAI
1) Serão atendidos prioritariamente os pedidos de acesso à informação relacionados com medidas de enfrentamento do coronavírus.
2) Ficarão suspensos os prazos de resposta a pedidos de acesso à informação nos órgãos ou nas entidades da administração pública cujos servidores estejam sujeitos a regime de quarentena, teletrabalho ou equivalentes e que, necessariamente, dependam de:
I - acesso presencial de agentes públicos encarregados da resposta; ou
II - agente público ou setor prioritariamente envolvido com as medidas de enfrentamento da situação de emergência de que trata esta lei.
3) Os pedidos de acesso à informação pendentes de resposta deverão ser refeitos no prazo de dez dias, a partir da data em que for encerrado o estado de calamidade pública.
4) Não serão aceitos os pedidos de recurso por conta da negativa de resposta.
5) Enquanto perdurar o decreto de calamidade, os pedidos de informações deverão ser feitos exclusivamente pela internet. Fica suspenso, portanto, o atendimento presencial.
O que diz a Lei de Acesso à Informação
- É dever do Estado garantir o direito de acesso à informação, de forma objetiva, ágil e transparente.
- Todo cidadão, sem necessidade de justificativa, pode pedir dados a qualquer órgão público, que deve responder em 20 dias, prorrogáveis por mais 10.
- Os órgãos devem manter sites com dados atualizados, detalhados e de fácil acesso.