De camiseta verde-bandeira, uma dupla de voluntários do partido que o presidente Jair Bolsonaro pretende criar ciceroneou potenciais apoiadores em 6 de fevereiro, no 5º Tabelionato de Notas, no centro de Porto Alegre. Tinham a marca da Aliança pelo Brasil estampada no lado esquerdo do peito, sendo facilmente reconhecidos por eleitores dispostos a assinar uma das 492 mil fichas necessárias para coloca a sigla de pé.
— Uma senha, por favor — pedia Luiz Salatino, 46 anos, à recepcionista sempre que um futuro correligionário se acercava.
— É só aguardar ser chamado no guichê. Preenche tudo bonitinho, depois traz aqui —prosseguia a colega Evelise Albuquerque, 41 anos.
Foi o terceiro mutirão no tabelionato da Rua Siqueira Campos que a dupla armou neste ano, reproduzindo estratégia que se espalha no país. Para acelerar o processo de reconhecimento de assinaturas, representantes da Aliança têm convocado coletas em tabelionatos, assegurando o envio de fichas autenticadas à Justiça Eleitoral.
Inseridos na repartição em horário normal de funcionamento, Salatino e Evelise descomplicam a papelada e esclarecem dúvidas. Bolsonaristas ativos nas redes sociais, costumam chamar apoiadores por WhatsApp ou Facebook, enviando convites com a imagem do presidente. Aos interessados, basta se apresentar com título de eleitor e documento de identidade e desembolsar a taxa de R$ 6,65, cobrada pelo reconhecimento de firma.
O compasso de assinaturas tem animado bolsonaristas, alimentando a ideia de que o partido pode estar pronto para a campanha municipal deste ano. Em uma hora, GaúchaZH contabilizou oito apoiadores no 5º Tabelionato, entre signatários e eleitores em busca de informações. Voluntários asseguram que só se manifestam quando provocados.
— Por questão ética, não ficamos abordando as pessoas feito vendedor na porta de loja. Ninguém carrega título de eleitor, as pessoas que nos procuram já têm intenção de assinar — afirmou Salatino.
Naquela quinta-feira, a dupla diz ter recolhido quase cem assinaturas. Entre elas, a da aposentada Nelci Cruz, 64 anos, moradora do bairro Teresópolis.
— Vim apoiar nosso presidente. Temos de sustentar ele, né? Terminar com o PT —protestou.
Nelci soube do mutirão pelos grupos que frequenta no WhatsApp, assim como a aposentada Rosa Maria Caldas, 68 anos.
— Foi um bombardeio — contou Rosa. — Simpatizo com o Bolsonaro, e o Brasil tem de acabar com essa roubalheira toda.
Mobilização
Mais de uma dezena de atos semelhantes aconteceram nas últimas semanas em municípios gaúchos, segundo apoiadores. Para alguns tabelionatos, contudo, a estratégia constrange. Em reservado, funcionários do 5º Tabelionato da Capital relataram queixas de clientes de esquerda. Gestora da repartição, Inajara Manica diz que o local é público e, portanto, tem de atender a todos:
— Se vier uma pessoa do PT ou da Aliança, temos de manter a imparcialidade.
Mas nem só de atos no interior de cartórios se move o futuro partido. Parte dos voluntários inovou, levando tabeliães para eventos aos finais de semana. Em Novo Hamburgo, no Vale do Sinos, onde a coleta está mais organizada, dois mutirões foram realizados em sábados.
A atividade foi na autointitulada “sede municipal” da Aliança na cidade, um prédio de esquina pintado de verde, amarelo e azul com imagem de 10 metros de altura de Bolsonaro. Até o ano passado, o edifício no bairro Ideal fazia às vezes de QG do PSL, ex-sigla do presidente.
O delegado Rodrigo Zucco, da 3ª Delegacia de Polícia Regional em São Leopoldo, responde pela iniciativa que recolheu quase 600 assinaturas nos dois dias.
No município hamburguense, que deu 75% de seus votos a Bolsonaro no segundo turno, apoios também têm sido impulsionados por dois tabelionatos que armazenam fichas —Zucco é um dos 97 nomes autorizados pelos representantes nacionais a recolhê-las no Estado.
— Não é um benefício para o futuro partido do presidente, mas um serviço que os cartórios estão autorizados a prestar a todas empresas e a eventos de grande número de pessoas —contemporiza Zucco.
No sábado (15), um mutirão irá para dentro da Assembleia Legislativa, em Porto Alegre. Representantes da Aliança preparam um simpósio no Teatro Dante Barone, com entrada gratuita. O ponto alto do evento será a participação de Bolsonaro por vídeo ao vivo. E, claro, com a presença de tabeliães.
Regularidade é investigada
Inédito no país, o uso de cartórios por apoiadores do presidente Jair Bolsonaro tem provocado dúvidas sobre a legalidade, causando desdobramentos jurídicos.
O Ministério Público solicitou, no fim de janeiro, que o Tribunal de Contas da União investigue a regularidade da coleta e o suposto envolvimento de tabeliães.
No pedido, o subprocurador-geral Lucas Rocha Furtado sublinhou que “se trata da utilização de serviço público em prol da campanha de filiação de partido que, como se sabe, vem sendo organizado pelo mandatário maior da nação, donde se exigiria maior comprometimento com a moralidade e a impessoalidade”.
Já o Conselho Nacional de Justiça negou liminar que queria suspender o recolhimento de assinaturas em cartórios, além de autorizar a abertura de firmas em evento da Aliança. Responsável por fiscalizar as atividades dos cartórios no país, a entidade se posicionou após questionamentos de partidos de oposição.
“Notários não podem participar de eventos políticos como apoiadores, mas não há qualquer impedimento legal para a atuação dos cartórios, de forma excepcional, em eventos de cunho político-partidário, desde que a atuação seja limitada à prática de atos que lhe são próprios”, pontuou o corregedor nacional de Justiça, Humberto Martins, em uma das deliberações.
A aproximação entre Aliança e cartórios teve início em dezembro, quando representantes da futura sigla buscaram parceria informal com o Colégio Notarial do Brasil (CNB), entidade privada que representa 9 mil notários em 24 Estados. Pelo site da entidade, é possível imprimir a ficha de apoio e encontrar a relação de pessoas autorizadas pela advogada de Bolsonaro, Karina Kufa, para retirá-las nos tabelionatos.
Pelo estatuto, o CNB veda “participar, apoiar ou difundir, ativa ou passivamente, quaisquer manifestações de caráter político”. Em sua defesa, assegura não haver qualquer tipo de parceria, apoio ou convênio com a Aliança.
Organizadores da atividade classificam a busca dos cartórios pelos bolsonaristas como mera estratégia para impedir a invalidação dos registros. “O reconhecimento de firma nas fichas de apoio a novos partidos pode ser solicitado por qualquer grupo, independentemente de ideologia”, informou, em nota, o CNB.
Novidade
Especialista em direito eleitoral, Augusto Mayer dos Santos aposta que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) será chamado a se posicionar devido ao caráter de novidade da parceria. Por ora, o advogado considera a iniciativa irregular.
— Esse episódio deflagrou novo momento na formação de partidos políticos no país. Pelo fato de ser desconhecido, gera dúvida e reticência, mas é apenas uma tentativa de revestir os apoiamentos de idoneidade. Para responder se há alguma facilidade ou simpatia dos cartórios com a Aliança, só tem uma maneira: que um partido de esquerda se organize para fazer a mesma coisa — avalia.