Concebida à imagem e semelhança do pensamento do presidente Jair Bolsonaro, a Aliança pelo Brasil apresenta um ideário de extrema-direita até então inédito no multifacetado sistema partidário brasileiro. A nova agremiação sintetiza uma doutrina conservadora baseada em fervor religioso, liberalismo econômico e armamentismo.
Divulgado no ato de fundação, quinta-feira (21), em Brasília, o programa da legenda tem 3.732 palavras. Nas sete páginas lidas pela advogada Karina Kufa, uma de suas futuras dirigentes, há seis menções ao vocábulo Deus, quatro a armas e quatro a aborto. A palavra emprego só aparece uma única vez.
— Desde a redemocratização, em 1985, não existiu algo que se aproxime a esse conservadorismo. Sempre tivemos políticos de direita, mas não com um programa tão alinhado. O sucessor da Arena, depois de muitas fusões, se chama Progressistas (PP) e tem um dos programas mais avançados em políticas públicas e sociais – diagnostica o cientista político Jairo Nicolau.
Depuração
Bolsonaro nunca teve apreço por partidos. Em 29 anos de vida pública, já foi filiado a oito legendas. A decisão de criar do zero uma nova sigla se deu após uma divisão no PSL que tumultuou seu governo. Brigado com o presidente nacional, Luciano Bivar, e fustigado pelo escândalo das candidaturas laranjas, ele sentiu a impossibilidade de um armistício e resolveu sair.
O principal objetivo na criação do novo partido foi fazer uma depuração no bolsonarismo. Ao vencer a eleição, Bolsonaro protagonizou um fenômeno que provocou a maior renovação da Câmara desde o fim da ditadura militar, com 244 deputados novatos, a maioria ligada a siglas de centro-direita. O PSL formou a segunda maior bancada, com 52 assentos, mas, apesar da comunhão em torno do conservadorismo, tal contingente jamais demonstrou unidade.
Agora, Bolsonaro quer não apenas fidelidade absoluta dos correligionários, como também imprimir uma agenda que represente seus valores políticos, morais e cristãos. Para tanto, foi assessorado por Karina e pelo assessor especial Filipe Martins, um dos mais fervorosos discípulos do ideólogo Olavo de Carvalho dentro do governo.
— Bolsonaro apertou todos os botões da casaca da ultradireita. Ele uniu os segmentos religiosos e da bala, num partido onde não quer ser contestado. O PT de Lula e o PDT de Brizola tiveram aspectos personalistas, mas jamais nesse grau. É de um fundamentalismo tóxico — afirma o historiador e cientista político Boris Fausto.
Bases
Para reunir os princípios dessa ideologia bolsonarista surgiu o programa lançado quinta-feira, cuja síntese promete um “partido soberanista, comprometido com a autodeterminação e não com os objetivos e as falsas promessas do globalismo”. Após texto de introdução, no qual diz que o país está diante de um “momento privilegiado”, o manifesto lista as bases da Aliança pelo Brasil. O primeiro item é “respeito a Deus e à religião”, no qual a legenda invoca a primeira missa celebrada no país, em 1500, como prova de que são “as devoções e os cultos populares que dão vida, forma e cor ao povo brasileiro”.
Um dos trechos mais longos do programa conclama a “defesa da vida, da legítima defesa, da família e da infância”. Trata-se de uma apologia ao armamentismo e ao conceito de família como união de um homem e uma mulher. O texto contém ainda um repúdio intransigente ao aborto e à chamada ideologia de gênero, com defesa da educação domiciliar, baseada na “herança cultural brasileira e ocidental”.
A agenda econômica foi relegada à última parte do manifesto e concentra os pilares da gestão atual, com culto à livre iniciativa e à propriedade privada e rejeição à “planificação da economia”, sistema adotado em países comunistas.
— A agenda hiperconservadora nos costumes e hiperliberal na economia se aproxima muito do Partido Republicano, nos Estados Unidos. O que surpreendeu foi essa religiosidade toda. É um programa claramente reacionário. Nunca tivemos no país um grande líder de direita dominando completamente uma máquina partidária. Vamos ver como vai avançar, se Bolsonaro conseguirá manter a popularidade – reflete Nicolau.
Durante o lançamento, Bolsonaro disse que a Aliança é uma oportunidade de unir “todos os brasileiros de bem” pelo futuro do Brasil, depois de ter enfrentado “problemas” no PSL.
O ideário
Dividido em cinco tópicos, o programa do novo partido do presidente Jair Bolsonaro apresenta os seus princípios.
1) Deus e religião
Em 357 palavras, a Aliança pelo Brasil registra sua inalienável fé cristã. “A relação entre esta nação e Cristo é intrínseca, fundante e inseparável”, resume o texto. O novo partido define como valores fundantes o “Evangelho e a civilização ocidental, herdeira do virtuoso encontro entre as cidades de Jerusalém, de Atenas e de Roma”. Há compromisso com a liberdade religiosa, embora ressalve que “jamais a laicidade do Estado significou ateísmo obrigatório”.
2) Valores tradicionais
É um elogio ao patriotismo, com nuances que lembram a devoção dos americanos aos founding fathers, os pais fundadores dos Estados Unidos. “O partido se compromete a lutar pela restauração dos valores tradicionais, consolidados na vida de homens e mulheres do passado, fundadores e formadores do Brasil” , diz o texto. Esse resgate cultural deve ser centrado nos princípios das “tradições lusitanas e hispânicas, do Direito Romano, da filosofia grega, da moral judaico-cristã.”
3) Aborto, família e infância
Um dos trechos mais enfáticos do programa, concentra o combate ao aborto, tipificado como “a destruição de todo o edifício moral e jurídico sustentador do Estado”. O tópico defende ainda a família, entendida como união do homem e mulher, como núcleo central da sociedade, prega uma infância livre da erotização precoce e classifica a chamada ideologia de gênero como “chaga”. Há ainda culto ao direito da posse de arma como elemento de legítima defesa.
4) Ordem e representação
Espécie de compromisso ideológico da moral bolsonarista, o item diz que o partido se esforçará pela conservação dos valores cristãos, da memória e da cultura brasileira”. O texto repudia a burocracia estatal e promete extinguir “conselhos, comitês, grupos de trabalho, comissões ou coletivos”. Contém ainda fortes críticas ao “ativismo judicial”, com adoção de mecanismos para suspender “atos judiciais que invadam competências legislativas.”
5) Defesa do livre mercado
Síntese da cartilha do ministro da Economia, Paulo Guedes, o item, já na primeira frase, “repudia o socialismo e o comunismo” e garante condução liberal de todas as políticas de gestão e controle do Estado. O trecho critica a “função social da propriedade”, conceito usado pela esquerda em defesa da reforma agrária, e assegura promoção à livre iniciativa, com eliminação de “controles e interferências estatais sobre a economia, através de mecanismos burocráticos, tributários ou regulatórios.”