A estreia do presidente Jair Bolsonaro na Assembleia Geral da ONU durou 32 minutos e reproduziu o viés ideológico que conduz sua retórica desde a campanha eleitoral. Ocupando o papel de destaque que confere ao Brasil o solene ato de abrir a conferência global, Bolsonaro atacou os regimes de Cuba e Venezuela, alfinetou o presidente francês, Emmanuel Macron, defendeu sua política ambiental e indígena, disparou estocadas a partidos e organizações de esquerda e invocou sua devoção religiosa. Confira abaixo os trechos mais polêmicos e o contexto para cada declaração.
Médicos Cubanos
"Em 2013, um acordo entre o governo petista e a ditadura cubana trouxe ao Brasil 10 mil médicos sem nenhuma comprovação profissional. Foram impedidos de trazer cônjuges e filhos, tiveram 75% de seus salários confiscados pelo regime e foram impedidos de usufruir de direitos fundamentais, como o de ir e vir. Um verdadeiro trabalho escravo, acreditem... Respaldado por entidades de direitos humanos do Brasil e da ONU! Antes mesmo de eu assumir o governo, quase 90% deles deixaram o Brasil, por ação unilateral do regime cubano."
O contexto
Lançado em 2013 pela então presidente Dilma Rousseff, o Mais Médicos foi criado para enfrentar a escassez de mão de obra especializada em saúde humana, sobretudo em regiões distantes dos grandes centros urbanos. O programa empregou mais de 18 mil profissionais, sendo que pouco mais de 11 mil eram cubanos, todos com a devida formação documentada. O contrato celebrado com a Organização Pan-Americana de Saúde previa que a maior parte dos salários seria transferida diretamente ao governo de Cuba. Com a vitória de Bolsonaro nas eleições, quase todos os médicos retornaram a Cuba antes da posse do novo presidente, após decisão do governo cubano de romper o contrato.
Crise na Venezuela
"O socialismo está dando certo na Venezuela! Todos estão pobres e sem liberdade! O Brasil também sente os impactos da ditadura venezuelana. Dos mais de 4 milhões que fugiram do país, uma parte migrou para o Brasil, fugindo da fome e da violência. Temos feito a nossa parte para ajudá-los, através da Operação Acolhida, realizada pelo Exército brasileiro e elogiada mundialmente. Trabalhamos com outros países, entre eles os EUA, para que a democracia seja restabelecida na Venezuela, mas também nos empenhamos duramente para que outros países da América do Sul não experimentem esse nefasto regime."
O contexto
De entusiasta da chegada ao poder de Hugo Chávez, Jair Bolsonaro passou a crítico feroz do regime venezuelano. Em dezembro, ao descobrir que o presidente Nicolás Maduro havia sido convidado para sua cerimônia de posse, pediu que o convite fosse revogado. A virulência contra o país vizinho, contudo, é mais centrada na retórica, sem ações práticas. Em janeiro, Bolsonaro chegou a anunciar que revogaria a adesão a adesão do Brasil ao Pacto Global para Migração Segura, mas recuou e montou, em Roraima, a Operação Acolhida. Até abril deste ano, 66.311 imigrantes venezuelanos haviam sido acolhidos.
Foro de São Paulo
"O Foro de São Paulo, organização criminosa criada em 1990 por Fidel Castro, Lula e Hugo Chávez para difundir e implementar o socialismo na América Latina, ainda continua vivo e tem que ser combatido."
O contexto
Criado a partir de um seminário realizado em 1990 para discutir a integração política na América Latina, o Foro de São Paulo congrega dezenas de partidos e organizações de esquerda. Começou com 60 partidos e hoje dobrou de tamanho, abrangendo 120 siglas de 25 países. O Foro, contudo, concentra muito mais as preocupações da direita do que da esquerda. Sem poder deliberativo, serve apenas para discussão de teses, embora seja citado por ideólogos do governo Bolsonaro como um entidade voltada a conspirações para implantação do comunismo na América Latina.
Queimadas na Amazônia
"Nesta época do ano, o clima seco e os ventos favorecem queimadas espontâneas e criminosas. Vale ressaltar que existem também queimadas praticadas por índios e populações locais, como parte de sua respectiva cultura e forma de sobrevivência. Problemas qualquer país os tem. Contudo, os ataques sensacionalistas que sofremos por grande parte da mídia internacional devido aos focos de incêndio na Amazônia despertaram nosso sentimento patriótico. É uma falácia dizer que a Amazônia é patrimônio da humanidade e um equívoco, como atestam os cientistas, afirmar que a nossa floresta é o pulmão do mundo."
O contexto
Alvo de fortes críticas internacionais, o governo demorou a reconhecer o aumento nas queimadas da Amazônia. A divulgação do crescimento do desmatamento na região, registrado pelo Inpe, irritou o presidente a ponto de mandar demitir o então diretor do órgão, Ricardo Galvão. Embora os meses de agosto a outubro realmente sejam os de maior estiagem, aumentando os focos de incêndio, a proliferação de queimadas está mais relacionada ao crescente desmatamento do que aos efeitos do clima. Bolsonaro determinou o emprego das Forças Armadas no combate ao fogo, mas a imagem do país no Exterior já estava chamuscada.
A rixa com Macron
"Questionaram aquilo que nos é mais sagrado: a nossa soberania! Um deles por ocasião do encontro do G7 ousou sugerir aplicar sanções ao Brasil, sem sequer nos ouvir. Agradeço àqueles que não aceitaram levar adiante essa absurda proposta. Em especial, ao presidente Donald Trump, que bem sintetizou o espirito que deve reinar entre os países da ONU: respeito à liberdade e à soberania de cada um de nós."
O contexto
Em agosto, no auge das críticas internacionais às queimadas e ao desmatamento na Amazônia, o presidente da França, Emmanuel Macron, cogitou uma possível internacionalização da região. "É um verdadeiro caso que se coloca se um Estado soberano tomasse de maneira clara e concreta medidas que se opõem ao interesse de todo o planeta", afirmou Macron. Bolsonaro elevou o tom da reação e chegou a insultos pessoais, mas a proposta de Macron jamais ganhou respaldo de outros países e teve efeito contrário, ampliando o entendimento de que qualquer ação nesse sentido feria a soberania do Brasil.
A questão indígena
"Existem, no Brasil, 225 povos indígenas, além de referências de 70 tribos vivendo em locais isolados. Cada povo ou tribo com seu cacique, sua cultura, suas tradições, seus costumes e, principalmente, sua forma de ver o mundo. A visão de um líder indígena não representa a de todos os índios brasileiros. Muitas vezes, alguns desses líderes, como o cacique Raoni, são usados como peça de manobra por governos estrangeiros na sua guerra informacional para avançar seus interesses na Amazônia. Infelizmente, algumas pessoas, de dentro e de fora do Brasil, apoiadas em ONGs, teimam em tratar e manter nossos índios como verdadeiros homens das cavernas."
O contexto
Liderança indígena brasileira mais conhecida no mundo, o cacique Raoni fez um périplo de três semanas pela Europa em maio, denunciando ameaças à Amazônia. Aos 87 anos, ele foi recebido por chefes de Estado e pelo papa Francisco. Raoni busca apoio internacional para arrecadar 1 milhão de euros com objetivo de proteger o Parque Nacional do Xingu de madeireiros e agropecuaristas. Em agosto, o cacique esteve no encontro do G7, na França. Bolsonaro acusa o líder de ser "peça de manobra", contudo levou à ONU a índia Ysani Kalapalo, sua apoiadora e cuja presença na Assembleia Geral é deslegitimada pela Associação Terra Indígena Xingu. Em nota oficial, a associação afirma que Ysani não representa nenhuma entidade representativa e que ela atua "para ofender e desmoralizar as lideranças e o movimento indígena no Brasil".
A guerra ideológica
"A ideologia se instalou no terreno da cultura, da educação e da mídia, dominando meios de comunicação, universidades e escolas. A ideologia invadiu nossos lares para investir contra a célula mater de qualquer sociedade saudável, a família. Tentam ainda destruir a inocência de nossas crianças, pervertendo até mesmo sua identidade mais básica e elementar, a biológica. O politicamente correto passou a dominar o debate público para expulsar a racionalidade e substituí-la pela manipulação, pela repetição de clichês e pelas palavras de ordem. A ideologia invadiu a própria alma humana para dela expulsar Deus e a dignidade com que Ele nos revestiu."
O contexto
Com uma campanha baseada no slogan "Brasil acima de tudo, Deus acima de todos", Bolsonaro foi eleito com forte discurso conservador e religioso. Para o presidente, artistas, professores, estudantes e jornalistas são instrumentos de uma suposta política de conversão esquerdista, voltada para implantar o socialismo no país. Desde o início do governo, elegeu esses setores como alvo e toma decisões com objetivo de atingir sobretudo sua autonomia financeira. Há ainda uma investida contra a chamada ideologia de gênero, termo criado por setores da direita para atacar políticas afirmativas.