Servidores da Receita Federal em todo o país consideram estar "sob ataque" e planejam formas de reagir a medidas como a tentativa do presidente Jair Bolsonaro de interferir politicamente em nomeações para cargos na entidade. Em grupos no WhatsApp, representantes da categoria têm trocado mensagens em que usam os termos "indignação" e "perplexidade" diante da determinação do Planalto de substituir nomes como o superintendente no Rio, Mário Dehon, e o delegado da alfândega do porto de Itaguaí (RJ), José Alex de Oliveira. Além de cogitarem a entrega em massa de cargos de chefia, na quarta-feira funcionários da Receita pretendem comparecer ao trabalho vestindo preto para sinalizar a insatisfação.
— A situação, hoje, é de indignação. Acredito que, se o governo interferir na Receita, haverá uma entrega coletiva de cargos — garante o presidente do Sindicato dos Auditores Fiscais (Sindifisco) em nível nacional, Kleber Cabral.
Cabral afirma que o número de demissionários poderia chegar a 200, mas explica que essa é apenas uma percepção pessoal. A indignação da classe, que se segue a manifestações semelhantes por parte da Polícia Federal, se intensificou com o anúncio de mudanças de comando sem justificativa aparente. Mas a revolta inclui outros fatores, conforme um texto de convocação para o Dia Nacional de Luto, na quarta, como a "suspensão de investigações (...) para blindagem de agentes públicos, a mordaça imposta ao Coaf, os injustos questionamentos do TCU quanto à remuneração dos Auditores, os puxadinhos à Lei do Abuso de Autoridade".
Diante desse cenário turbulento, a tentativa de ingerência do Planalto fez explodir a insatisfação por três razões principais:
1. Desrespeito aos ritos: conforme portaria interna, a substituição de chefes de unidade tem normas a cumprir, como abertura de um processo de seleção ao final de um mandato que pode ter duração variável, inscrição de interessados em um banco de talentos, entre outros itens. A troca do responsável pelo porto de Itaguaí seria inédita ao desconsiderar todos esses pré-requisitos. Por isso, a possível substituição de José Alex de Oliveira por um auditor do Amazonas sem experiência em cargos de chefia foi recebida com perplexidade nos corredores.
2. Apreço ao superintendente: para forçar a troca do chefe do porto de Itaguaí, Bolsonaro teria ameaçado exonerar o superintendente da Receita no Rio, Mário Dehon. Ocorre que o servidor tem muito prestígio entre colegas de todo o país, sendo considerado um profissional sério e dedicado.
— Se fosse outro superintendente, talvez a reação fosse um pouco diferente. Mas escolheram um alvo muito ruim para brincar — afirma Kleber Cabral.
3. Porto de alto risco: o porto de Itaguaí fica em área-chave para o interesse de milicianos e traficantes, que tentam controlar o espaço para enviar drogas para a Europa e receber armamento da Ásia. O atual chefe da unidade, segundo dados da própria Receita, teria conseguido reduzir de 70% para 17% a proporção de operadores no porto com algum histórico de fraudes. O temor entre os colegas é de que sua substituição poderia fragilizar a fiscalização. Um dossiê com essas informações foi remetido ao governo federal.
Uma das hipóteses para a intervenção do Planalto é uma possível reação de Bolsonaro ao que o próprio presidente chamou de uma "devassa" que sua família estaria sofrendo por parte da Receita. Segundo Cabral, porém, essa informação é falsa.
— Não temos como afirmar com certeza, mas entre os auditores há uma desconfiança de que o objetivo com essas tentativas de mudança é fragilizar os controles. Por isso, a Receita tem de ser tratada de maneira republicana, técnica e impessoal.
O Planalto não comenta o assunto.
As razões da revolta
O que insufla a insatisfação interna na Receita:
- Punição de auditores: no começo de agosto, o ministro do STF Alexandre de Moraes suspendeu procedimentos da Receita e afastou dois auditores que apuraram dados de 133 contribuintes, incluindo o ministro Gilmar Mendes e a mulher do presidente do STF, Dias Toffoli.
- Suspensão de processos: o STF suspendeu processos judiciais em que houve compartilhamento de dados bancários e fiscais sem prévia autorização judicial, envolvendo órgãos como o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf).
- Vencimentos: o Tribunal de Contas da União (TCU) contesta o bônus de produtividade pago aos funcionários da Receita Federal. Implantado há três anos como um incentivo ao trabalho, a remuneração é fixa e paga a todos os servidores.
- Risco de fatiamento: recentemente, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, criticou o que chamou de "excesso de poder" da Receita e cogitou o fatiamento do órgão para evitar isso.
- Lei de abuso: servidores acreditam que pontos específicos da Lei do Abuso de Autoridade podem dificultar o trabalho de fiscalização da Receita.
- Ingerência: a tentativa do Planalto de interferir em nomeações de cargos importantes no Rio é vista com perplexidade ao desconsiderar normas internas e colocar em risco rotinas de fiscalização em áreas sensíveis como o Porto de Itaguaí.