Esta reportagem está dividida em quatro partes. Clique nos links abaixo para ler as demais:
Parte 1: por que a Lagoa do Peixe está no centro de disputa no Ministério do Meio Ambiente?
Parte 3: herdeira de produtores rurais, nova chefe do parque é alvo de questionamentos
Parte 4: em infográfico, conheça o Parque Nacional da Lagoa do Peixe
Unidade de conservação de proteção integral povoada por mais de 270 espécie de aves migratórias no Sul do Estado, o Parque Nacional da Lagoa do Peixe nunca teve a regularização fundiária concluída. Dos 36 mil hectares, 34% já pertencem à União. Outros 31% estão em processo de aquisição e 19% têm propriedade desconhecida. O plano de manejo, defasado, é de 2004. Com isso, mesmo que seja impossível produzir em cerca de 70% do território, formado principalmente por dunas, faixa de areia, mar e lâminas d'água, não são raros casos de ruralistas que drenam banhados para criar gado. Esses animais, que não poderiam estar lá, se destacam em meio às aves.
Presidente da Associação dos Proprietários de Terras no parque, Luiz Agnelo reclama do baixo valor pago pelo governo nas indenizações — segundo ele, na faixa dos R$ 4 mil o hectare — e das restrições à pecuária dentro da unidade. Ele garante que nem 3% dos proprietários foram indenizados.
— O preço teria que ser R$ 10 mil. Querem jogar essas famílias na miséria das cidades. Queremos ficar ali, somos os guardiões — afirma Agnelo, dono de 22 hectares dentro do parque, pensados para criação de gado.
O Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza diz que parques nacionais são de posse e domínio públicos. Portanto, áreas particulares precisam ser desapropriadas. Porém, explica o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), a celeuma não se resolveu mesmo tendo passado 33 anos desde a implantação do parque por inúmeros desacordos, como não aceitação pelos pecuaristas dos valores propostos pela União, o que leva à judicialização dos processos, e dificuldade que proprietários têm de comprovar a posse, muitas conquistadas por usucapião, mas sem o devido rito legal.
— O parque só trouxe problema. Ou paga o preço de mercado ou vira APA. Já que não querem pagar, deixem as pessoas produzindo lá — defende Domingos, presidente do Sindicato Rural de Mostardas.
A carta que pescadores guardam na manga
Uma credencial numerada é o que dá direito para 158 pessoas a pescarem na área do parque, atividade proibida por lei em unidades de conservação deste porte. Essa distorção vem desde sua criação, quando a área era habitada por famílias de pescadores. Na época, a União decidiu relevar a pesca daqueles que eram nativos e economicamente dependente dela. Especula-se que que o entendimento foi que, mais dia menos dia, a atividade terminaria ao passo em que as pessoas fossem mudando de profissão, de cidade ou envelhecendo. Mas novas autorizações foram concedidas, algumas para filhos de pescadores, fazendo a anomalia se perpetuar.
Quem tem casa lá, não quer desmanchar com medo de perder a credencial e ser impedido de pescar por alguma normativa que porventura seja baixada da noite para o dia. Com os anos, esses ranchos se deterioraram, e a manutenção deles foi proibida. Os imóveis que seguem de pé estão caindo aos pedaços. Não há mais água encanada, saneamento e nem energia elétrica. Dos 158 pescadores autorizados, pelo menos 150 não moram mais lá, ainda que mantenham as residências estrategicamente.
— São ranchos de pesca de uso sazonal, utilizados principalmente no verão no apoio a pesca do camarão. Os pescadores possuem residência nas cidades ou em outras áreas fora do parque. Além disso autorizamos, durante o período de pesca do camarão, a construção de ranchos temporários, os quais são removidos ao final da temporada — detalha Guilherme Betiollo, chefe em exercício da unidade.
Com 47 anos, Ronaldo Santana Gonçalves tarrafeia desde que se conhece por gente. Deixou o parque há 13, quando se mudou com a família para a cidade, mas vai frequentemente à casa na praia.
— Está velha e torta porque não me deixam arrumar. Não dá pra fazer nada. E, se desmanchar, é capaz de nem me deixarem mais pescar — lamenta.
Ele reclama do ICMBio, que aplica multa, por exemplo, se eles sair do parque com peixe beneficiado. Se pudesse limpá-lo, o frescor da carne se estenderia por mais tempo e diminuiria a frequência de idas à cidade para congelamento. Por normas sanitárias, os pescados só podem sair do parque inteiros. Outra reclamação dele é sobre a quantidade de pessoas que pescam sem carteirinha, burlando a fiscalização. Fora dos limites, a oferta é menor. O ICMBio argumenta que há falta de pessoal. São 13 funcionários entre servidores e terceirizados, mas apenas três são aptos a fiscalizar.
Gilmar Copelo Brum, 60 anos, é outro que tem carteirinha — a dele de número 59. Conhecido como Alemão, também sobrevive da pesca, mas não tem casa no parque, um indicativo de que manter o imóvel não é condição para poder pescar. Ronaldo e Alemão são contra a transformação da unidade em APA, por entenderem que isso abriria possibilidade para outras pessoas disputarem o mesmo peixe com eles.
Importância vai além do território nacional
Oceanólogo e doutor em ecologia e recursos naturais, Paulo Tagliani reforça que a criação de gado é incompatível com a categoria de parque nacional, mas alerta que algumas aves dependem de pastagem baixa para sua sobrevivência. Por isso, antes de qualquer decisão, sugere que sejam feitos estudos para avaliar a importância de manutenção dos ruminantes, talvez em áreas restritas. Tagliani é, também, professor vinculado ao núcleo de gerenciamento costeiro do Instituto de Oceanografia da Universidade Federal do Rio Grande (Furg), e, se dependesse dele, toda a faixa de terra entre a Lagoa dos Patos e o mar seria transformada em APA. A exceção seria a área da Lagoa do Peixe, mantida como parque nacional.
— Essa unidade tem uma importância ambiental muito grande, tanto que integra a rede hemisférica de reservas de aves de praia, um reconhecimento internacional de sua relevância.
Biólogo e doutor em ecologia, Luís Fernando Perelló lembra que o parque é limite sul para as aves que vêm do Norte e limite norte para muitas que vêm do Sul.
— Recategorizar para APA traria consequências na biodiversidade de outros países. E o prejuízo para os pescadores seria enorme, pois teriam de concorrer com pescadores de Santa Catarina, que usam outras tecnologias. Os pescadores daqui seriam varridos — avalia
Projeto quer aproveitar o vento e instalar parque eólico na região
A ventania que sopra constantemente atraiu o interesse de investidores dispostos a instalarem parques eólicos em Mostardas na última década. Cabe à Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) conceder as licenças, mas precisa de anuência do ICMBio quando o empreendimento for projetado para estar na área de aproximação do parque, conforme previsto por legislação estadual. Isso porque os aerogeradores podem interferir no pouso das aves migratórias que chegam à região. Ao se aproximarem, descendo gradativamente, as aves poderiam colidir com as pás.
Em 2018, o ICMBio respondeu à Fepam que os estudos apresentados por um investidor específico eram insuficientes e pediu mais informações e aprofundamento das pesquisas. O projeto foi feito por uma empresa em parceria com o presidente do Sindicato Rural de Mostardas, Domingos Antônio Velho Lopes. No contrato, consta que Domingos cederá 1,5 mil hectares de suas terras para fixação das torres.
— Estamos atrás destas complementações, mas o grau de complexidade dos estudos exigidos pelo ICMBio é muito alto e prejudica a concorrência — reclama o sindicalista.
Em nota assinada por Domingos, em 17 de julho de 2019, a entidade disse estar inconformada "diante do escarcéu instaurado pelo anúncio da nomeação" de Maira para a chefia do ICMBio, pois a ruralista "reúne sobradas e qualificadas condições para exercer a função".