Esta reportagem está dividida em quatro partes. Clique nos links abaixo para ler as demais:
Parte 1: por que a Lagoa do Peixe está no centro de disputa no Ministério do Meio Ambiente?
Parte 2: pesca, pecuária, potencial eólico e santuário ecológico: os interesses que cercam o parque
Parte 4: em infográfico, conheça o Parque Nacional da Lagoa do Peixe
A sucessão de chefias na gestão é a mais atual polêmica em que o Parque Nacional da Lagoa do Peixe está envolvido. O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, nomeou em, 12 de julho, a agrônoma Maira Santos de Souza, 25 anos, para a função de responsável pela área ambiental, em substituição a Fernando Weber, funcionário do ICMBio. Inexperiente é herdeira de um dois maiores produtores rurais da região, a indicada recebeu críticas e agora tem sua nomeação questionada.
O Ministério Público Federal em Porto Alegre pediu ao novo presidente nacional do ICMBio, o comandante da Polícia Militar Ambiental de São Paulo, coronel Homero de Giorge Cerqueira, documentos que mostrem a aptidão de Maira ao cargo de chefe do Parque Nacional da Lagoa do Peixe. O ofício foi enviado na quarta-feira (17) pelo procurador da República Rodrigo Valdez depois que um morador de Torres, no Litoral Norte, representou contra a nomeação da ruralista. Ele questiona a competência de Maira.
O pedido de informações feito pelo procurador ao ICMBio em Brasília é embasado no decreto 9727, de março deste ano, assinado pelo presidente Jair Bolsonaro. Nele, estão estipulados critérios e procedimentos para nomeações de cargos em comissão. O presidente do ICMBio tem 10 dias para responder.
— Cargos em comissão são de livre nomeação, mas alguns requisitos precisam ser cumpridos — sublinhou Valdez.
No caso da ruralista, seria necessário atender a um dos cinco itens abaixo:
- Possuir experiência profissional de, no mínimo, dois anos em atividades correlatas às áreas de atuação do órgão ou da entidade ou em áreas relacionadas às atribuições e às competências do cargo ou da função;
- Ter ocupado cargo em comissão ou função de confiança em qualquer Poder, inclusive na administração pública indireta, de qualquer ente federativo por, no mínimo, um ano;
- Possuir título de especialista, mestre ou doutor em área correlata às áreas de atuação do órgão ou da entidade ou em áreas relacionadas às atribuições do cargo ou da função;
- Ser servidor público ocupante de cargo efetivo de nível superior ou militar do círculo hierárquico de oficial ou oficial-general; ou
- Ter concluído cursos de capacitação em escolas de governo em áreas correlatas ao cargo ou à função para o qual tenha sido indicado, com carga horária mínima acumulada de cento e vinte horas.
No formulário de nomeação, anexado ao processo de indicação, Maira assinalou o item número 1 e justificou: "atuo na fazenda ASPS desde 2010, no setor de gestão de pessoas delegando algumas tarefas a serem executadas e no setor de produção, acompanhando as atividades no campo desde o plantio até a colheita da cultura de arroz irrigado e soja". Ela se formou engenheira agrônoma em dezembro de 2016.
O procurador não se manifestará antes de receber as respostas, mas adiantou que, entre as medidas cabíveis, estão representação do MPF para que a nomeação seja anulada, ajuizamento de ação caso essa exigência seja descumprida ou arquivamento do pedido de informação se não for constatada irregularidade.
Nome indicado por deputado
Economizando palavras, Maira respondeu a duas perguntas por telefone na quarta-feira. Ao fim da conversa, pediu que novos questionamentos fossem feitos na "semana que vem", quando começará na nova função. E desligou. Ela deve iniciar na segunda-feira (22).
Perguntada se sua formação e experiência lhe deram conhecimento para assumir a chefia do parque, disse que "capaz para assumir qualquer cargo todo mundo é" e que "não é a profissão que determina a capacidade, mas, sim, a vontade de fazer um bom trabalho". Sobre as razões de sua indicação ao posto, foi mais sucinta:
— Olha, acho que por ser daqui (da região).
Na segunda-feira seguinte a sua nomeação (15), Maira visitou as câmaras de vereadores e prefeituras de Mostardas e de Tavares. Só depois, esteve no seu novo posto de trabalho, o ICMBio, onde foi apresentada aos colegas. Em todos os encontros, entrou muda e saiu calada. "Parecia até constrangida", disseram pessoas que estiveram em três destes encontros. O porta-voz foi o ex-prefeito de Mostardas e chefe de gabinete do Instituto Rio Grandense do Arroz (Irga), Alexandre Galdino (MDB), seu "companheiro político", como se autodenominou à reportagem.
— Ela não tem nada de política. É uma excelente profissional, que tem toda a capacitação. Conhece a região. Não é como pessoas que vieram de fora só para perseguir o pessoal. E mais: ela não vai destruir o parque — defendeu.
O nome da jovem foi levada ao Ministro de Meio Ambiente, Ricardo Salles, pelo deputado federal Alceu Moreira, correligionário de Galdino.
— Um grupo de pessoas aí da volta pediu o nome dela por ser o único que passa nas exigências da lei. E ela é uma pessoa com capacidade de conciliação. Precisamos disso para harmonizar o processo entre o parque e os produtores — explicou Moreira.
A ascensão da jovem tem relação com a visita de Salles a Tavares e Mostardas em 13 de abril, quando o ministro anunciou abertura de processo administrativo disciplinar contra todos os funcionários do ICMBio depois de ouvir queixas de pescadores e produtores locais. Durante pronunciamento, Salles pediu para que os funcionários do órgão se juntassem a ele na mesa, mas ninguém se manifestou:
— Não tem nenhum funcionário? — perguntou. — Está aqui o presidente do ICMBio (Adalberto Eberhard integrava a comitiva) que, embora seja um ambientalista histórico, uma pessoa respeitada no setor, veio aqui ouvir a opinião de todos vocês. E na presença do ministro do Meio Ambiente e do presidente do ICMBio, não há nenhum funcionário aqui — emendou.
Salles, então, disse que instauraria o processo. A plateia aplaudiu com entusiasmo. Eberhard manteve-se em silêncio, mas pediu demissão dois dias depois. Funcionários do ICMBio disseram que não foram ao evento por não terem sido informados. O compromisso não estava na agenda oficial do ministro, como consta na página do ministério na internet.
Sobre o ICMBio
É responsável pela gestão de 334 unidades de conservação e 14 centros de pesquisa e conservação de espécies no território brasileiro, totalizando 173 milhões de hectares (9,1% do território continental e 24,4% do território marinho do país). Cabe ao instituto incentivar a participação da sociedade na preservação, estruturar os espaços para o turismo, promover pesquisa científica e conservação, fazer atividades de fiscalização, prevenção e combate a incêndios e atuar no uso sustentável da biodiversidade. Conforme a Ascema Nacional, o instituto tem 1.593 servidores no país e orçamento anual de R$ 330 milhões. A entidade diz que a visitação nas unidades de conservação cresceu 300% entre 2007 e 2018 (de 3,1 milhões para 12,4 milhões de visitantes). É o instituto que gerencia o Sistema Nacional de Unidades de Conservação instituídas pela União.
A cronologia da crise no ICMBio
13 de abril
Enquanto visitava a região do Parque Nacional da Lagoa do Peixe, Ricardo Salles determinou abertura de processo administrativo contra servidores do ICMBio. No encontro, estavam políticos como o senador Luis Carlos Heinze (PP-RS) e representantes do agronegócio.
15 de abril
Então presidente do ICMBio, Adalberto Eberhard pediu demissão em ofício enviado ao ministro Salles. O médico veterinário alegou "motivos pessoais" e agradeceu pela "oportunidade e toda a confiança" depositada. Sabe-se que Eberhard era contrário à fusão entre o ICMBio e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama), uma plataforma defendida por Salles e pelo presidente Jair Bolsonaro desde o início do governo.
17 de abril
Servidores federais da área ambiental divulgaram carta aberta à sociedade repudiando as "declarações e posturas" do ministro. No documento, a Associação Nacional de Servidores da Carreira de Meio Ambiente (Ascema Nacional) alegou que "o ministro vem, reiteradamente, atacando e difamando o corpo de servidores do ICMBio através de publicações em redes sociais e de declarações na imprensa baseadas em impressões superficiais após visitas fortuitas a unidades de conservação onde não se dignou a dialogar com os servidores para se informar sobre a situação e sobre eventuais problemas e dificuldades". No mesmo dia, Salles anunciou o comandante da Polícia Ambiental de São Paulo, Homero Cerqueira, para a presidência do ICMBio.
23 de abril
Salles mandou exonerar o chefe do Parque Nacional Lagoa do Peixe, Fernando Weber, vinculado ao ICMBio. Sem mencionar nome, disse ter sucessor escolhido para o cargo. Questionado sobre as razões que levaram à demissão de Weber, Salles explicou apenas que "cargo de confiança é prerrogativa do Executivo escolher".
24 de abril
Três diretores do ICMBio pediram exoneração. O comunicado foi apresentado à pasta pelo presidente-substituto do órgão, Régis Pinto de Lima, e por outros dois diretores Luiz Felipe de Luca e Gabriel Henrique Lui.
12 de julho
Salles nomeou Maira Santos de Souza para substituir Weber como chefe do Parque Nacional da Lagoa do Peixe. A unidade é administrada pelo ICMBio e, até abril de 2019, contava com um chefe do seu quadro. Maira é agronôma e filha de produtores rurais da região. O nome foi indicado pelo deputado federal Alceu Moreira (MDB-RS), que disse ter o aval da bancada ruralista.