Tradicional reduto de discussão da direita brasileira, o Fórum da Liberdade expôs, nos últimos dias 8 e 9, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), um racha na visão de empresários e intelectuais sobre o governo federal. A maioria dos painelistas elogiou, para uma plateia de 5 mil pessoas, a agenda econômica capitaneada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, calcada em redução da burocracia, privatizações e uma nova Previdência. Mas alguns palestrantes suscitaram silêncio e até vaias ao defender uma ideia: o governo de Jair Bolsonaro não é liberal e, por vezes, é o oposto disso.
Na palestra mais enfática nesse sentido, o sociólogo e geógrafo Demétrio Magnoli afirmou que o presidente brasileiro é autoritário, tendo em vista as críticas a direitos humanos, os ataques à imprensa e os elogios à ditadura militar. Para Magnoli, Bolsonaro mina a credibilidade da mídia para incentivar que a população se informe nas redes sociais, um ambiente no qual as notícias falsas não são confrontadas “para o benefício de líderes autoritários”. E criticou a nova direita brasileira.
– Essa aliança maléfica, profana e diabólica entre autointitulados liberais e a extrema-direita conservadora é a pior coisa que poderia acontecer, não só para a democracia, mas também para o liberalismo. Não existe, no pensamento liberal, liberdade econômica sem liberdade política. Se o pacto for levado adiante, o liberalismo será marcado a ferro e fogo como o pensamento dos xenófobos e dos racistas – criticou o painelista, vaiado pela maioria do público e aplaudido por uma minoria.
Analistas consultados por GaúchaZH após o evento, para repercutir as questões nele debatidas, apontam que Bolsonaro, ainda que tenha declarado conversão ao liberalismo após conhecer Guedes, é liberal só até a página dois. Ataques a pilares do liberalismo político e social fazem parte de sua trajetória parlamentar, em especial contra direitos humanos (já afirmou que o regime militar deveria ter matado mais pessoas), atuação da imprensa (há um ataque a cada três dias no Twitter desde a posse, conforme levantamento do jornal O Estado de S. Paulo) e liberdade sexual (disse, há alguns anos, que preferia um filho morto a um filho gay).
Bolsonaro recebeu as bênçãos do mercado quando afirmou ter se convertido ao liberalismo e que daria plenos poderes ao ultraliberal (defende o Estado mínimo e a privatização da educação e da saúde) Paulo Guedes. A expectativa foi alta: haveria um presidente para tocar a agenda do movimento no Planalto. Mas a realidade indica que o próprio chefe do Executivo discorda de seu ministro da Economia.
Não existe, no pensamento liberal, liberdade econômica sem liberdade política. Se o pacto for levado adiante, o liberalismo será marcado a ferro e fogo como o pensamento dos xenófobos e dos racistas.
DEMÉTRIO MAGNOLI
Sociólogo
A certa altura, Bolsonaro defende a reforma da Previdência. Em outra, diz que não gostaria de aplicá-la. Em dado momento, intervém na Petrobras para conter a alta no preço do diesel, à semelhança da gestão Dilma Rousseff – o que levou a uma perda de R$ 32 bilhões em valor de mercado na petrolífera. Na semana seguinte, diz ter simpatia em vender a Petrobras. O secretário de Privatizações do governo, Salim Mattar, chegou a declarar à revista Veja que “está frustrado” porque há resistências dentro do Planalto ao programa de venda de estatais. Guedes e a chamada “ala militar” tentam apagar os incêndios, minimizando as falas do chefe. Enquanto isso, o mercado demonstra impaciência, com alta no dólar e menor entrada de investimento estrangeiro no Brasil em janeiro e fevereiro, meses tradicionalmente de maior movimentação.
– O governo tem pessoas liberais, mas Bolsonaro não é uma delas. Se você é liberal, você defende as liberdades. Então, é liberal em tudo, não só em algumas coisas. Mais do que reacionário, esse governo é retrógrado e revisionista, sem compromisso com os fatos. Só Paulo Guedes e Sergio Moro são liberais; os outros ministros seguem uma cartilha populista-nacionalista, enquanto o próprio Bolsonaro tem um histórico antiliberal, antirreforma e autoritário. Guedes terá dificuldades por causa do próprio presidente – acredita a economista Monica de Bolle, diretora de Estudos Latino-Americanos da Universidade Johns Hopkins (EUA).
A cientista política guatemalteca Gloria Álvarez exalta a liberdade como remédio contra regimes autoritários. Ela é ultraliberal – o que inclui a pauta de costumes.
Conservar a liberdade de mercado, sim, até daqueles que não gostamos, como o mercado das drogas, da prostituição e do aborto. Conservar a família? Com certeza. Mas a família não é só pai e mãe e filhos.
GLORIA ÁLVAREZ
Cientista política
– Conservar a liberdade também significa conservar a liberdade sexual: que cada um faça o que melhor lhe convenha, desde que não afete a liberdade de outra pessoa. Conservar a liberdade de mercado, sim, até daqueles que não gostamos, como o mercado das drogas, da prostituição e do aborto. Conservar a família? Com certeza. Mas a família não é só pai e mãe e filhos. Se vamos conservar a família, conservemos em todas as suas variedades, não só na variedade em que um setor da sociedade acredita – afirma Gloria.
A incompatibilidade entre Bolsonaro e o liberalismo pode se explicar pela própria origem dessa ideologia: o movimento nasceu no século 17 como uma luta por autonomia em uma época na qual a sociedade obedecia ao rei e à Igreja. No livro O Liberalismo – Antigo e Moderno, o sociólogo José Guilherme Merquior aponta quatro demandas básicas não atingidas até então: direitos universais para não ser oprimido pelo Estado, liberdade de acreditar no que quiser, de escolher os representantes e de viver a vida que bem entender.
Conquistadas essas demandas, o liberalismo hoje é entendido como uma doutrina que prega o livre mercado e a autonomia dos indivíduos. Há um sentimento difuso de “faça o que você quiser de sua vida, desde que não prejudique ninguém”. Com base nisso, liberais no sentido mais clássico defendem a redução do Estado na economia e no comportamento. Por isso, é comum a defesa da legalização do aborto e das drogas, de direitos LGBT+, da liberação da posse de armas – e até do sal na mesa de bar.
Bolsonaro prometeu consertar a economia, combater a corrupção e defender a agenda conservadora de costumes. Seu governo, nesses primeiros meses, está sendo coerente com o projeto de campanha.
MATEUS BANDEIRA
Candidato do partido Novo ao governo do RS em 2018
A corrente comporta variações: para dar alguns exemplos, vai do liberalismo clássico, que defende Estado mínimo, chega ao liberalismo social, que defende um Estado garantindo acesso da população à educação e à saúde, passa pelo ultraliberalismo, que defende a privatização da saúde e da educação, e vai até o anarco-capitalismo, que defende o fim do Estado para que o mercado se autorregule, inclusive na segurança e na Justiça.
Quando a Inglaterra aprovou o casamento LGBT+, em 2013, o primeiro-ministro britânico, David Cameron, foi a favor da medida – e ele é do Partido Conservador. Ao justificar sua posição, Cameron afirmou que a mudança fortaleceria a sociedade e que ele era um “liberal-conservador”, ou seja, queria “conservar” a instituição do casamento na sociedade.
Os Estados Unidos já tiveram vários tons de liberalismo: da abertura na economia e nos costumes de Barack Obama até o conservadorismo de Donald Trump – ainda que o foco seja no nacionalismo e menos na interferência das escolhas individuais, algo sagrado para norte-americanos. O Canadá tem considerável liberdade na economia e nos costumes – o primeiro-ministro Justin Trudeau, mesmo heterossexual, participou da parada LGBT+ de Toronto.
É possível conciliar liberalismo na economia com conservadorismo nos costumes? Houve tentativas. O Chile adotou uma economia liberal durante a ditadura do general Augusto Pinochet, mas a repressão oficial matou 3,2 mil pessoas e torturou outras 38 mil (o liberalismo, vale lembrar, não tolera autoritarismo). A China cada vez mais defende o Estado mínimo na economia, mas o Partido Comunista é o único no poder desde 1949, a população não pode usar Facebook e o governo foi denunciado por colocar chineses muçulmanos em campos de trabalhos forçados, obrigá-los a abdicar da fé e jurar lealdade ao partido. O Brasil é outro exemplo: durante o regime militar, abriu o mercado para investimento estrangeiro, mas aplicou censura, tortura e perseguições contra quem pensava diferente do estabelecido pelo governo.
Uma nova direita brasileira
Bolsonaro foi eleito em meio a um maremoto de direita que, apenas de seu partido, o PSL, levou ao poder três governadores, quatro senadores e 52 deputados federais na Câmara – a segunda maior bancada da Casa, atrás apenas do PT (que tem 56). Os votos foram puxados pelo desejo de mudança, pela perda de paciência frente à corrupção e pelo antipetismo – este, um combustível essencial para o surgimento de uma “nova direita brasileira”, liberal na economia e conservadora nos costumes, afirma a cientista política Camila Rocha em sua tese de doutorado defendida na Universidade de São Paulo (USP).
A pesquisadora acredita que houve um período de maturação de discussões desse espectro político, entre 2006 e 2010, em grupos de militância online, primeiro no Orkut e, depois, em outras redes sociais. Esse grupo, aponta Camila, combina “ultraliberalismo e a ideia de que há uma hegemonia cultural da esquerda”.
– Essa nova direita não é, na origem, bolsonarista: embarcou em Bolsonaro por uma decisão pragmática. O bolsonarismo é um movimento político de extrema-direita, mas essas pessoas (da nova direita brasileira) não são exatamente extremistas, não apoiam a ditadura militar, por exemplo. São pessoas que viram uma abertura por ele ser de direita e por acreditar que, uma vez alçado ao governo, poderia ter um corpo técnico liberal na economia. Foi o que aconteceu. Como foi uma aliança pragmática, há descompassos entre a Presidência e o corpo técnico do governo. Paulo Guedes é liberal. Jair Bolsonaro, não – analisa a pesquisadora.
Mais uma vez, portanto, a direita brasileira é associada ao conservadorismo nos costumes. Em círculos de intelectuais entusiastas do liberalismo, é recorrente a crítica de que falta ao Brasil um governo liberal em tudo, e não apenas na economia – posição expressada por Demétrio Magnoli na PUCRS. O partido Novo, visto inicialmente com bons olhos por liberais que aguardavam uma legenda progressista nos costumes, aos poucos passou a indicar o contrário. Salim Mattar, então grande doador da legenda e hoje secretário de Privatizações do Ministério da Economia, afirmou durante a campanha que o candidato à Presidência da sigla, João Amôedo, e Bolsonaro tinham muito em comum, por “ambos serem conservadores nos valores da família e liberais na economia”.
No governo Bolsonaro, os conservadores operam em uma lógica da exclusão: bons contra maus, nós contra eles, nova política contra velha política. Isso ofusca a pauta liberal, que funciona em outra lógica: a da negociação, do diálogo.
DENIS ROSENFIELD
Filósofo
A declaração reflete o posicionamento de muitos brasileiros: 54% da população é altamente conservadora em questões como legalização do aborto, casamento LGBT+, pena de morte e redução da maioridade penal, segundo pesquisa Ibope de 2016. Mateus Bandeira, que foi candidato ao governo do Rio Grande do Sul pelo Novo, não vê contradição no liberalismo bolsonarista.
– O presidente prometeu consertar a economia, combater a corrupção e defender essa agenda de costumes. Seu governo, nesses primeiros meses, está sendo coerente com o projeto de campanha – diz Bandeira.
Há, claro, exemplos de liberais na economia e nos costumes na história brasileira. Um deles é o economista Ricardo Paes de Barros, criador do Bolsa Família. Ele apresentou o programa primeiro ao então candidato à Presidência da República José Serra (PSDB), que teria considerado a medida muito “à direita”. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), adversário de Serra na campanha, acabou embarcando na ideia.
Outro exemplo é Fernando Henrique Cardoso (PSDB), que implementou uma ampla agenda de privatizações no país nos anos 1990, mas também criou programas destinados aos mais pobres, como o auxílio-gás e o Saúde da Família, conhecido por estruturar a visita de médicos a comunidades carentes. Falando a ZH por e-mail, FHC critica falta de equilíbrio no debate político atual no país, que leva pessoas, ainda que liberais, a serem tachadas de esquerdistas, ou mesmo “comunistas” – basta que não sejam conservadoras nos costumes:
O bolsonarismo é um movimento político de extrema-direita, mas a nova direita não é exatamente extremista: embarcou em Bolsonaro por uma decisão pragmática.
CAMILA ROCHA
Cientista política, autora da tese de doutorado "Menos Marx, Mais Mises: Uma Gênese da Nova Direita Brasileira (2006-2018)", defendida na USP neste ano.
– Ver “comunismo” por todos os lados, mesmo que nem sempre fosse assim, era expressão da luta ideológica na época da Guerra Fria. Naquele período, havia o poderio da União Soviética, e, em nossa região, havia Cuba. Hoje, a URSS é a... Rússia, a China prega o “socialismo harmonioso” e Cuba não exporta mais revolução alguma, principalmente agora com o desastre venezuelano. Trata-se de um anacronismo, de atraso mental e não de luta propriamente política.
O ex-presidente também critica o desejo de aniquilação dos adversários políticos no país hoje. FHC vê distinção entre o discurso dos seguidores de Bolsonaro e a prática.
– Os bolsonaristas são vocalmente extremistas, mas o governo segue as regras – analisa. – Os que lhe são contrários, como eu, não devem calar sempre que o governo quiser ultrapassar os limites da Constituição. Mas é preciso distinguir na ação o que é realmente contra a democracia e o que é uma visão para fazer com que as coisas funcionem melhor no Brasil.
O filósofo político Eduardo Wolf, pesquisador na PUC-SP e autor do livro Guerra Cultural – Ideólogos, Conspiradores e Novos Cruzados (a ser lançado em breve), se recusa a chamar Bolsonaro de liberal: diz que o presidente é reacionário “porque elogia a ditadura militar e idealiza de maneira fantasiosa um passado irreal e mítico, enquanto o liberalismo conservador, na tradição inglesa, preza em manter o que já existe, mas não é refratário a mudanças e sempre defende a liberdade de expressão”.
– A expectativa de viver no governo Bolsonaro um liberalismo político e econômico, com Estado enxuto garantindo direitos individuais, separação entre religião e Estado e reconhecimento do pluralismo de valores, será frustrada. O núcleo de comando político não sabe ser republicano, é inteiramente antiliberal. Em toda a sua trajetória, essas pessoas foram inimigas declaradas das convicções do liberalismo – avalia. – A onda liberal no Brasil é resumida em ser contra o PT e privatizar. Os mais entusiasmados com Bolsonaro não estão se importando nem com o fato de que o governo quer implantar uma nova verdade sobre a história do Brasil. Isso é flagrantemente antiliberal e antidemocrático.
A onda liberal no Brasil é resumida em ser contra o PT e privatizar.
EDUARDO WOLF
Filósofo político
A direita brasileira também sofre influências da direita norte-americana – basta ver a admiração de Bolsonaro e do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, por Donald Trump. O chanceler, em especial, já louvou o atual presidente norte-americano por “resgatar a identidade do Ocidente no mundo moderno”. Se, por aqui, liberais na economia e conservadores nos costumes se aliaram contra o PT, nos EUA a organização foi menos automática: foram necessários 30 anos para que ultraliberais e conservadores, ligados sobretudo a evangélicos, discutissem para chegar a um acordo. As discussões ocorreram graças a think-thanks financiadas por empresários e, em especial, à revista National Review, que aproximou as duas alas. O grupo, que deu base ao governo de Ronald Reagan, ganhou o apelido de neocons (neoconservadores).
O filósofo Denis Rosenfield, que tem trânsito com militares do Planalto, defende que a pauta dos costumes prejudica o andamento das reformas econômicas. Ele afirma, ainda, que o governo Bolsonaro vive uma inversão de papéis: militares agem como civis e dialogam com a oposição, em uma lógica democrática, enquanto civis adotam uma “lógica de guerra, querendo eliminar a oposição como se fosse inimiga, quando na verdade negociar faz parte da política democrática”.
– No governo Bolsonaro, os conservadores operam em uma lógica da exclusão: bons contra maus, nós contra eles, nova política contra velha política. Isso ofusca a pauta liberal, que funciona em outra lógica: a da negociação política, do diálogo com o outro. O conservadorismo está impedindo o liberalismo de agir – diz Rosenfield. – Ressalvo, no entanto, que ainda que as declarações do presidente sejam autoritárias, sua prática não é. Não há uma lei criada contra a imprensa, por exemplo.
A deputada federal bolsonarista Bia Kicis (PSL-DF) concorda com a análise do filósofo, mas diz que essa postura é “a única reação possível”:
– Estamos em uma guerra mesmo. Há inimigos do povo e do Brasil, é assim que a gente tem que ver.
Conforme filósofos e especialistas, teorias políticas só existem quando aplicadas a um contexto, e, portanto, não há como pensar em um “liberalismo ideal” ou um “socialismo ideal”. Não há uma definição fechada das correntes, cada país interpreta a teoria a sua maneira. O liberalismo à brasileira, dia após dia, se desenvolve – vale assistir aos próximos passos.