Acostumada a lidar com delitos como boca de urna e compra de votos, a Justiça Eleitoral passará a julgar, a partir de agora, processos com a complexidade e a envergadura da Operação Lava-Jato. A decisão, tomada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no último dia 14, é alvo de debate no meio jurídico, em especial sob dois aspectos: a capacidade dos tribunais eleitorais de dar conta da atribuição e o futuro da maior ofensiva contra malfeitos no Brasil.
Até então, as ações sob responsabilidade de juízes eleitorais se concentravam, basicamente, em violações praticadas a cada dois anos, nos períodos de campanha. Essas transgressões, em sua maioria, são de menor potencial ofensivo e com penas reduzidas (de até quatro anos de prisão), passíveis de substituição.
No Rio Grande do Sul, dados do Tribunal Regional Eleitoral (TRE-RS) confirmam essa realidade. Na última década, foram registradas 150 condenações por crimes eleitorais (média de 15 por ano), sendo que, em 80% delas, as punições foram convertidas em sanções alternativas, como a prestação de serviços comunitários
Nesses 10 anos, de acordo com o TRE-RS, foram contabilizadas 26 prisões e, nesta sexta-feira (29), conforme a Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe), nenhum dos 40,8 mil apenados do Estado estava preso por determinação da Justiça Eleitoral. Isso se explica, segundo o presidente do TRE-RS, Jorge Luís Dall’Agnol, pela natureza dos delitos e das punições previstas em lei.
A questão é que agora, com a definição do STF, crimes como corrupção e lavagem de dinheiro, ligados à prática de caixa 2, devem ser enviados aos tribunais eleitorais – e não mais à Justiça comum (que, no caso da Lava-Jato, é a Federal). Essa alteração é criticada por membros da força-tarefa porque, na avaliação deles, o braço eleitoral do Judiciário carece de estrutura. Ex-integrante do grupo, o procurador Douglas Fischer afirma que a Justiça Eleitoral “não é talhada para julgar práticas mais graves”.
O debate, contudo, está longe do consenso. Há quem discorde da decisão do STF, como o especialista em Direito Eleitoral Antônio Augusto Mayer dos Santos, mas, nem por isso, compartilhe da tese de que a Justiça Eleitoral não dará conta do recado.
— Creio que tem condições de absorver a atribuição, porque vai se valer dos mesmos recursos da Justiça comum. Além disso, por se tratar de matéria criminal, penso que esses casos serão tratados como prioridade, até porque a cobrança da opinião pública é evidente – opina Santos.
Referência em Direito Penal no país, o jurista Miguel Reale Jr também identifica falhas na interpretação do STF e, embora elogie a atuação da Justiça Eleitoral, prevê dificuldades.
— No seu nicho de atuação, a Justiça Eleitoral é ágil, perfeita, das melhores do Brasil. Agora, se cair uma massa de processos criminais lá... Não tem estrutura, porque é efêmera, se corporifica em uma determinada época — pondera Reale Jr.
Ele também aponta outro possível efeito colateral da decisão do STF: a indicação “do caminho das pedras para quem quer encontrar uma fórmula mais leve de repressão penal”
— Fica a seguinte lição aos corruptos: só receba dinheiro durante a campanha, porque, se você for pego, será por crime eleitoral.
Grupo de trabalho deve planejar adaptações
Coordenador do Gabinete Eleitoral do Ministério Público no Estado, Rodrigo Lopez Zilio não vê esse risco.
— Pela decisão do Supremo, o réu responderá por crime eleitoral e, também, por crime comum. A diferença é que responderá na Justiça Eleitoral, que não é acostumada a isso — argumenta.
Para Zilio, a decisão do STF tem amparo jurídico, ainda que diversa do que vinha sendo praticado, e a Justiça Eleitoral está apta a assumir a tarefa, com uma condição:
— Os crimes que a Justiça Eleitoral está acostumada a julgar são bem diferentes dos crimes que a Lava-Jato enfrenta, que têm grande complexidade e, muitas vezes, demandam dedicação quase exclusiva. Dá para enfrentar? Dá, mas terá de haver uma adaptação. Isso também vale para o Ministério Público Eleitoral. Todos teremos de nos adaptar.
Na última terça-feira, a presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Rosa Weber, definiu a criação de grupo de trabalho para tratar disso. A intenção é definir medidas para assegurar o cumprimento da determinação do STF.
Conforme o presidente do TRE-RS, na próxima semana haverá reunião em Brasília para “olhar para todas essas questões”.
— Os TREs estão preocupados em se preparar para receber essas demandas da melhor forma possível. Da nossa parte, estamos prontos — garante o presidente do TRE-RS.
Entenda a polêmica
- Em 14 de março, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, por seis votos a cinco, que cabe à Justiça Eleitoral julgar crimes comuns que tenham conexão com crimes eleitorais.
- Isso significa que processos da Operação Lava-Jato envolvendo corrupção, ligados à prática de caixa 2, por exemplo, deverão ser enviados à Justiça Eleitoral e não mais à Justiça Federal.
- Com isso, políticos que tenham recebido propina desviada de obras públicas e usado parte do dinheiro em campanha serão processados na Justiça Eleitoral, especializada em julgar crimes como boca de urna, propaganda irregular e compra de votos.
- Integrantes da força-tarefa da Lava-Jato temem o enfraquecimento da operação e argumentam que os crimes de corrupção deveriam ficar na Justiça Federal, por ter mais estrutura para conduzir investigações complexas. Eles também sustentam que, pela Constituição, crimes contra o patrimônio da União deveriam ser processados na Justiça Federal.
- Apesar disso, a maioria do STF entendeu que o Código Eleitoral e o Código de Processo Penal são claros ao definir que cabe aos juízes eleitorais processar os crimes eleitorais conexos a crimes comuns (inclusive corrupção) e que a Justiça Eleitoral está preparada para isso.