Eleito deputado federal com 32,2 mil votos, Nereu Crispim (PSL) se tornou réu em ação de impugnação de mandato eletivo (Aime) que tramita no Tribunal Regional Eleitoral (TRE). O caso transcorre em sigilo, mas versa sobre suposto abuso de poder econômico, omissão de receitas e despesas na campanha e captação ilícita de votos.
Uma das suspeitas em apuração é de que Crispim, empresário da Região Metropolitana, tenha usado contas bancárias de laranjas para distribuir recursos a pelo menos um candidato a deputado estadual do PSL com quem fez dobradinha, o que poderia configurar esquema de caixa 2.
A ação foi protocolada no dia 7 de janeiro de 2019 por Marco Marchand (PSL), colega de partido de Crispim e segundo suplente de deputado federal da coligação. Ao fazer a análise prévia dos documentos juntados, o TRE deu andamento à ação e Crispim se tornou réu. O relator do caso é o desembargador eleitoral João Batista Pinto Silveira.
Parte da peça se baseia em extratos de depósitos e pedidos de quebra de sigilo bancário e telemático (permite visualização de mensagens por aplicativos de telefone). Mas também há confissões por escrito.
O imbróglio ganhou impulso a partir de registros feitos pelo sargento reformado Julio Cesar Doze (PSL), candidato a deputado estadual não eleito. Crispim e Doze fizeram acordo de dobradinha – quando dois candidatos a cargos diferentes se auxiliam na busca por votos. É permitido que um dos postulantes apoie o outro com transferência de recursos e impressão de material de campanha, por exemplo, desde que tudo seja registrado e feito de acordo com a lei. Não foi o que teria acontecido na parceria entre Crispim e Doze.
No início de dezembro, foi criado um grupo de WhatsApp com o nome "Deputados não eleitos PSL". O objetivo seria a "troca de informações". Em 12 de dezembro de 2018, um dia depois de ser adicionado ao grupo, Doze, com atuação em Santana do Livramento, escreveu uma longa carta: "Fato é que recebi recursos, tenho todos os comprovantes de depósitos e transferências, tudo caixa 2. (...). Vou expor tudo isso, não vou ficar nesse calote eleitoral", escreveu Doze, que também reclama de ter contraído dívidas por não ter recebido todas as verbas supostamente prometidas a ele. Em contato com a reportagem, Doze confirmou a autenticidade da mensagem. Nesta manifestação, ele não escreveu o nome de Crispim.
Isso mudou em 20 de dezembro de 2018, quando o sargento foi ao 4º Tabelionato de Pelotas para reconhecer sua assinatura em uma declaração por escrito de seis páginas – atualmente, Doze contesta as informações que ele mesmo escreveu. No texto, ele relata que Crispim lhe prometeu investimento de R$ 33 mil na campanha. O deputado federal teria passado menos dinheiro do que o prometido e, quando fazia os depósitos, não utilizava a conta oficial de campanha de Doze, conforme manda a lei.
Ele explicou na carta: “No dia 21 de agosto de 2018, passei os dados bancários de minha conta oficial de campanha, via WhatsApp. Dois dias após, o senhor Nereu solicitou uma conta extraoficial, pois segundo ele seria para pequenas despesas sem importância e sem nota. (...) No dia 24 de agosto eu consultei minha conta oficial de campanha, tendo notado que não havia qualquer depósito. Neste momento, entrei em contato com o candidato Nereu Crispim reclamando a inexistência de depósito na conta oficial de campanha. O senhor Nereu respondeu com a fotografia de um depósito realizado na conta do senhor Anderson Torres, momento em que iniciaram os crimes eleitorais”.
A reportagem fez contato com Torres. Ele disse que é amigo pessoal de Doze. Torres comentou que costuma emprestar, em diversas situações, sua conta na Caixa para que remessas de dinheiro sejam feitas a Doze por familiares. Torres ainda confirmou que recebeu depósitos durante a campanha e que entregou os recursos a Doze. Disse, no entanto, desconhecer a origem do dinheiro.
– Eram operações feitas em lotérica. Só aparece o valor – disse Torres, que informou ter repassado “na base de R$ 7 e R$ 8 mil” a Doze entre agosto e novembro.
Na sequência da declaração, Doze conta que encontrou Crispim em um hotel em Canoas, em 5 de setembro, ocasião em que diz ter recebido R$ 1 mil em dinheiro. Seis dias depois, houve um depósito de R$ 1,5 mil na conta de Torres, relata. Ele detalhou outras quatro remessas feitas por Crispim que caíram na conta de Torres entre 14 e 24 de setembro, em valores que variaram entre R$ 500 e R$ 2,5 mil.
“No dia 22 de setembro, foi solicitada uma série de contas bancárias de terceiros (laranjas) para que fossem depositadas as quantias para auxílio financeiro na campanha. (...) Trata-se apenas de pessoas contratadas para colaborar na campanha e que não tinham acesso à negociação por fora entre eu e Nereu Crispim”, descreveu Doze.
Depois de fazer as declarações que embasaram a abertura de ação que pode culminar em cassação de mandato, Doze se reaproximou de Crispim. Ele confirma que, recentemente, esteve em Brasília e visitou o gabinete do deputado, com quem fez um vídeo para postar nas redes sociais. O sargento nega que tenha sido contratado para trabalhar na Câmara pelo colega de PSL. Doze diz que foi coagido por homens armados dentro do cartório a assinar a carta de seis páginas em que faz as denúncias de caixa 2 e uso de laranjas contra Crispim. Ele afirma que ex-dirigentes e suplentes de deputado do PSL atuam nos bastidores para prejudicar Crispim.
O caso na justiça eleitoral
- A ação pede a impugnação do mandato de Nereu Crispim. Isso significa que, caso existam evidências suficientes, os desembargadores do TRE poderão cassar o mandato dele ao final do caso.
- A Aime se baseia na suposta infração ao artigo 350 do Código Eleitoral: “Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, para fins eleitorais”.
- Também baseia a ação a acusação de abuso do poder econômico, prática que é vedada pelo Código Eleitoral e pela Leia Eleitoral.
- Caso o TRE entenda que não há indícios suficientes, pode votar pela absolvição de Crispim.
- Após a decisão do TRE, poderá haver recurso junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Contraponto
Procurado por GaúchaZH, Crispim pediu, neste domingo (24), que as perguntas fossem enviadas por e-mail. Ele não respondeu até as 21h20min.
Já na segunda-feira (25), o deputado publicou nota em seu site em que afirma estar "plenamente tranquilo e disponível pra prestar contas à Justiça, à imprensa e, especialmente, aos meus eleitores". No texto, Crispim diz ser "vítima de uma atitude desonesta e desleal de um colega do meu próprio partido que ficou como suplente e deseja tomar meu mandato sob qualquer custo".
Confira a íntegra da nota do deputado federal Nereu Crispim:
"Sobre a reportagem publicada pelo portal GaúchaZH na noite deste domingo (24), que noticia o fato de ter me tornado réu por suspeitas de caixa dois, afirmo que estou plenamente tranquilo e disponível pra prestar contas à Justiça, à imprensa e, especialmente, aos meus eleitores.
Lamentavelmente, estou sendo vítima de uma atitude desonesta e desleal de um colega do meu próprio partido que ficou como suplente e deseja tomar meu mandato sob qualquer custo. Esclareço que a declaração não foi feita pelo Sargento Doze. Ele apenas assinou sob coação, assédio e extorsão de um grupo de marginais travestidos na figura de políticos.
O próprio Sargento Doze procurou a executiva estadual do partido para comunicar o ocorrido e manifestar a preocupação quanto à sua segurança. Inclusive, tenho documentos que provam que não fiz doação de campanha e serão devidamente usados em minha defesa.
Medidas judiciais serão adotadas contra as pessoas que forjaram essa declaração para tentarem me prejudicar.
Ratifico que não sou político. Estou político como fruto da democracia para trabalhar por mudanças em nosso país através de um movimento de renovação que se faz urgente e necessário. Nunca havia ocupado cargo público e sequer tinha participado de outro pleito eleitoral. Sou um empreendedor e construí minha carreira através do meu trabalho duro e honesto desempenhado ao longo de toda minha vida. Não preciso de privilégios e nunca fui encantado pela sede do poder. Pelo contrário: quando a violência atingiu minha casa e meus negócios, resolvi aceitar o desafio de ingressar neste mundo da política por revolta contra o sistema corrupto e ineficiente que há anos trava o nosso país e, também, por não me sentir representado pelos políticos tradicionais.
Minha campanha foi completamente limpa, ética e econômica. Não utilizamos recursos públicos nem verba partidária. Reafirmo minha serenidade, absoluta inocência e total disponibilidade para quaisquer esclarecimentos.
Sigo meu trabalho parlamentar focado na produtividade e transparência, com integral prestação de contas através das redes sociais".