Ao longo dos últimos anos, a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, repetiu publicamente que a jovem criada por ela como filha desde os seis anos, Kajutiti Lulu Kamayurá, hoje com 20 anos, teria sido acolhida para salvar a menina de um provável infanticídio e de péssimas condições de vida impostas pela tribo indígena Kamayurá, no Xingu, em Mato Grosso.
Índios da aldeia em que Lulu nasceu, ouvidos pela Revista Época, agora apresentam uma versão diferente para esse episódio em uma reportagem divulgada nesta quinta-feira. Segundo representantes da tribo, a menina não corria risco de vida e teria sido levada sem autorização sob a justificativa de que faria um tratamento dentário e seria devolvida depois.
Assinada por Natália Portinari e Vinicius Sassine, a reportagem traz depoimentos de familiares e outros integrantes da aldeia que conviveram com a menina posteriormente assumida por Damares. Os indígenas afirmam que Lulu teria sido levada irregularmente por Márcia Suzuki, amiga da ministra e com quem fundou a ONG Atini.
— Márcia veio na Kuarup (festa tradicional em homenagem aos mortos), olhou os dentes todos estragados (de Lulu) e falou que ia levar para tratar — declarou a pajé Mapulu à revista, referindo-se à dentição que teria ficado irregular pelo uso frequente de mamadeira.
Conforme a versão da tribo, a menina era criada pela avó paterna, Tanumakuru, porque a mãe não tinha condições. Os indígenas confirmam que a aldeia sofria com escassez de alimentos e de remédios, e que Lulu teria chegado a ficar desnutrida. Mas ressaltam que ela não sofria risco de ser morta. Em um antigo costume, crianças rejeitadas pelos pais ou muito debilitadas podiam ser sacrificadas. Porém, como a avó assumiu a criação da neta, não haveria essa possibilidade. Além disso, a prática envolve recém-nascidos, e Lulu já contava seis anos quando foi levada.
Os kamayurás negam outra informação repetida em diferentes oportunidades por Damares: segundo eles, a ministra não garantiu o contato frequente entre a garota e a família biológica. O relato dos indígenas é de que Lulu teria visitado a antiga aldeia pela primeira vez apenas dois anos atrás.
A adoção, guarda ou tutela de crianças indígenas é um processo complexo que exige aval da Funai — órgão atualmente sob comando da própria Damares, por ser vinculado à pasta da Mulher, Família e Direitos Humanos — e do Judiciário. A própria ministra já admitiu publicamente não ter seguido esse trâmite. A Revista Época encaminhou 14 perguntas a ela sobre o episódio, que foram parcialmente respondidas. Damares afirmou que "todos os direitos de Lulu Kamayurá foram observados. Nenhuma lei foi violada. A família biológica dela a visita regularmente. Tios, primos e irmãos que saíram com ela da aldeia residem em Brasília. Todos mantêm uma excelente relação afetiva".
Sobre a criança não ter sido devolvida, a ministra alegou que "Lulu Kamayurá já retornou à aldeia. Ela deixou o local com a família e jamais perdeu contato com os parentes biológicos". A questão sobre não ter adotado formalmente a menina não foi respondida.
Contraponto
No início da tarde desta quinta-feira (31), o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos divulgou nota afirmando que Damares não estava presente no processo de saída de Lulu da aldeia. "Nenhum suposto interesse público no caso deveria ser motivo para a violação do direito a uma vida privada, sem tamanha exposição", afirma a ministra. Confira a nota na íntegra:
Sobre as repercussões relacionadas à matéria da revista Época no processo de adoção de Lulu Kamayurá, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos esclarece os seguintes pontos:
1. A ministra Damares Alves não estava presente no processo de saída de Lulu da aldeia. As duas se conheceram em Brasília.
2. Lulu não foi arrancada dos braços dos familiares. Ela saiu com total anuência de todos e acompanhada de tios, primos e irmãos para tratamento ortodôntico, de processo de desnutrição e desidratação. Também veio a Brasília estudar.
3. Damares é uma cuidadora de Lulu e a considera uma filha. Como não se trata de um processo de adoção, e sim um vínculo socioafetivo, os requisitos citados pela reportagem não se aplicam. Ela nunca deixou de conviver com os parentes, que ainda moram em Brasília.
4. Lulu não foi alienada de sua cultura e passou por rituais de passagem de sua tribo.
5. Lulu não é pessoa pública. É maior de idade. Não foi sequestrada. Saiu da aldeia com familiares, foi e é cuidada por Damares com anuência destes. Nenhum suposto interesse público no caso deveria ser motivo para a violação do direito a uma vida privada, sem tamanha exposição.