Ao conceber seu ministério ignorando partidos tradicionais, Jair Bolsonaro (PSL) deixa em suspense um Congresso habituado a sustentar governos por meio de barganhas e conchavos. Deputados e senadores não sabem como reagir à inédita estratégia que privilegia a interlocução com bancadas temáticas, como ruralistas e evangélicos, e recusa indicações partidárias no loteamento da Esplanada.
Nos principais gabinetes de Brasília, a dúvida é se essa articulação dará certo. Alertado para os riscos da iniciativa, Bolsonaro se reuniu com mais de cem parlamentares de MDB, PSDB, PR e PRB nos últimos dias. Para frustração geral, houve conversas genéricas sobre propostas legislativas e apenas um aceno de espaços em escalões inferiores do governo. O PR aderiu prontamente, enquanto as demais siglas não afiançaram apoio incondicional.
Com experiência de 33 anos acompanhando o dia a dia do Congresso, o cientista político Antônio Queiroz afirma nunca ter visto um presidente formar equipe e construir sua relação com o parlamento virando as costas para os partidos. Queiroz salienta que Bolsonaro está cumprindo promessa de campanha ao nomear um ministério técnico e escorado em militares, mas põe em dúvida a eficácia da iniciativa.
— São os partidos que encaminham votação, orientam bancada, distribuem assentos nas comissões do Congresso, punem os deputados infiéis. Nenhuma bancada temática tem esse poder. Na largada de governo, essa estratégia pode dar certo porque Bolsonaro é extremamente popular e tem um ministério intimidador, cheio de militares e com o juiz da Lava-Jato. Mas em algum momento ele terá de ceder — aponta analista.
Por enquanto, ninguém ousa cobrar Bolsonaro publicamente. Nos bastidores, a insatisfação aumenta à medida que restam apenas cargos de menor envergadura. Veteranos da articulação política suspeitam que o Planalto pretende negociar no varejo, atendendo a demandas pessoais dos deputados em detrimento das siglas.
— Na real, nenhum de nós sabe o que vai acontecer. Antes se atendia aos presidentes dos partidos. Agora, pelo jeito, será cada deputado separadamente. O pessoal está aguardando. É um sistema que terá de ser testado — diz o vice-líder do governo na Câmara e deputado em quinto mandato, Beto Mansur (MDB-SP).
O futuro chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, admitiu que irá individualizar as conversas e que não projeta exigir fidelidade em todas as votações, respeitando questões de “foro íntimo”. Quem acompanha as reuniões da transição diz que, em vez de cargos, os deputados serão convidados a inaugurar obras em seus Estados, com direito a nome gravado em placa de metal.
— Vamos ter atenção muito grande com a base de cada parlamentar — afirmou Onyx.
Reformas serão obstáculos mais difíceis
É voz corrente nos corredores do Congresso que Bolsonaro não terá dificuldades em aprovar temas afins às bancadas temáticas, como a agenda dos ruralistas, a revisão do estatuto do desarmamento e pautas comportamentais simpáticas aos evangélicos. As dificuldades aumentam quando se trata de reformas que enfrentam rejeição popular, como a da Previdência, ou contrariam interesses econômicos, caso da tributária. Nessas discussões, raramente há consenso nas bancadas temáticas e cada partido costuma fechar questão para evitar dissidências.
— Os partidos têm programa, uma identidade definida. Então é mais fácil articular apoios nas votações que envolvem temas macroeconômicos. É mais republicano também, porque é mais transparente. As bancadas trocam votos por concessões objetivas — pontua Queiroz.
A própria natureza da composição ministerial assusta os parlamentares. Dos 21 titulares já indicados por Bolsonaro, 17 nunca ocuparam cargos na administração pública e 15 jamais atuaram no Legislativo. No próprio PSL, partido do presidente, 38 dos 52 deputados estão debutando em função pública.
Ciente dessa carência, Onyx escalou ex-deputados para auxiliar na relação com a Câmara. Em compensação, Onyx, Tereza Cristina (Agricultura), Luiz Henrique Mandetta (Saúde), Osmar Terra (Cidadania) e Marcelo Álvaro Antônio (Turismo) têm passagem pelo Congresso e irão atuar como facilitadores em seus partidos de origem, respectivamente DEM, MDB e PSL.
— É cedo para avaliar. O governo nem começou. Tem muito por aqui uma conversa do tipo “vamos ver quando ele precisar de voto”. Pode acontecer de darem um susto numa votação importante. Quando tem de dar o troco, político dá o troco — lembra um tarimbado conhecedor das traições de plenário.
Observadores atentos apontam o que seria outra falha dos novos inquilinos do Palácio do Planalto. Revisor das votações da Câmara e mais afeito à liturgia do poder, o Senado foi completamente ignorado na formação do ministério. Para agravar o panorama, seus integrantes rejeitam negociar com o segundo escalão e tampouco Onyx tem bom trânsito pelos carpetes azuis da Casa.
— Muito graúdo aqui no Congresso não reconhece esse pessoal como interlocutor. É gente do baixo clero, que nunca teve poder, e que agora tem muito poder. Bolsonaro monta a equipe como quiser. Mas quando começa a votar, quem põe o dedo pra dizer sim ou não é o deputado e o senador — alerta um graduado assessor parlamentar.
As divisões da Câmara
O tamanho das bancadas temáticas*
Frente Parlamentar Mista da Agropecuária
Parlamentares registrados: 255
Parlamentares atuantes: 118
Frente Parlamentar Evangélica
Parlamentares registrados: 202
Parlamentares atuantes: 39
Frente Parlamentar da Segurança Pública
Parlamentares registrados: 299
Parlamentares atuantes: 36
Frente Parlamentar da Educação
Parlamentares registrados: 252
Parlamentares atuantes: 40
Frente Parlamentar da Saúde
Parlamentares registrados: 211
Parlamentares atuantes: 28
*Levantamento dos cientistas políticos Silvio Cascione e Suely Araújo