Por Gunter Axt
Doutor em História Social pela USP
Há anos que não terminam como deveriam, em 365 dias. Neles engastam-se eventos que prendem sociedades inteiras numa espécie de loop. 1968 era bissexto, mas só terminou quando explodiu uma bomba dentro de um Puma no estacionamento do Riocentro, em 1981. A direita radical, que se consolidou no poder em 13 de dezembro de 1968, ainda daria suspiros, como no Caso Proconsult, em 1982, um esquema de manipulação de votos que tentou evitar a posse do governador do Rio de Janeiro, Leonel Brizola, que retornara ao país com a anistia de 1979. Mas, a rigor, o fiasco do Riocentro a silenciou.
1968 começou nublado. A eleição indireta para governador do RS em setembro de 1966 e a extinção dos velhos partidos provocaram racha entre apoiadores do movimento civil-militar de 1964. A candidatura do professor Ruy Cirne Lima, frustrada em convenção da governista Arena, mas acolhida pelo oposicionista MDB, tinha apoio da Igreja, da Farsul, de boa parte da imprensa e do meio universitário conservador (sobretudo o Direito da UFRGS). Já o deputado Peracchi Barcellos, do antigo PSD, tinha aval dos militares e do presidente Castello Branco. Para eleger Peracchi, oito deputados foram cassados, sem inquéritos. Somavam-se aos sete cassados em 1964. O Ministro da Justiça, o gaúcho Mem de Sá, achou demais e caiu.
Sinais de desgaste campeavam. Em fins de março de 1968, o estudante Edson Souto foi morto pela polícia no restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro, ampliando a rejeição da classe média, que se avolumava desde a invasão da Faculdade de Medicina em setembro de 1966. Em protesto, 100 mil pessoas tomaram a Avenida Rio Branco.
Em Porto Alegre, a tradicional passeata dos calouros de Direito, que havia sido proibida dois anos, ganhou reforço de estudantes de outras cidades. Os ventos do maio francês chegaram à Capital em 28 de junho. A Praça Montevidéu ganhou ares de Quartier Latin e a pancadaria acabou dentro da Catedral Metropolitana, onde a turma se refugiou das investidas da Brigada.
A repressão se alastrava, às artes e aos costumes. Os atores da peça Roda Viva, dirigida por José Celso Martinez Corrêa, em turnê, foram agredidos por uns 40 manifestantes com porretes aos gritos de “abaixo a pornografia” e “fora, comunistas”. O pequeno Teatro de Arena, durante a apresentação de uma peça de Brecht, foi invadido por soldados com metralhadoras em punho.
Nesse clima, a voz metálica do ministro da Justiça Luiz Antônio da Gama e Silva anunciou o AI-5. A “Revolução de 1964”, diziam seus arautos, “era democrática”: o Ato Institucional de 9 de abril tinha prazo de validade e só ganhou o número 1 quando surgiu o AI-2, em 27 de outubro de 1965. Agora, com o AI-5, dava-se um passo além: na melhor das hipóteses, um golpe dentro da “revolução”. O Conselho de Segurança Nacional – órgão composto por ministros demissíveis e cujas decisões dependiam da chancela do presidente, então o gaúcho Costa e Silva – era convocado sob o pretexto de resolver a crise com a Câmara, que não autorizara processar o deputado Moreira Alves, que exortara da tribuna as moças a não dançarem com os militares nas festas de 7 de setembro. Perdeu o grupo ligado a Castello Branco, que pretendia uma intervenção meio pretoriana, efêmera, que devolveria a “casa arrumada” para os civis. Ganharam os radicais que ambicionavam se eternizar no poder. Com o AI-5, a Presidência da República virou quinta estrela de generais, o último degrau na carreira.
Repetia-se o surrado Plano Cohen – documento forjado em 1937 pelo capitão Olímpio Mourão Filho (o mesmo que, como general, começara 1964 em Juiz de Fora) revelando suposto plano comunista, usado para legitimar o golpe do Estado Novo. A Constituição de 1967 já oferecia ferramental autoritário suficiente para conter a insatisfação popular, cujos efeitos foram, contudo, amplificados. O ministro Jarbas Passarinho assinou o Ato dizendo que assim evitava o pior. Mas o que poderia ser pior?
O AI-5 enfeixou poderes discricionários na Presidência. O Congresso foi fechado por 10 meses, assim como quase todas as Assembleias. Restabeleceram-se demissões sumárias e cassações. Interventores foram nomeados para Estados e municípios. Franquias à liberdade de expressão e de reunião foram suspensas. O habeas corpus foi restringido. Ministros do Supremo foram aposentados compulsoriamente pelo AI-6 e a composição da Corte foi alterada.
O país ganhou uma ditadura tipo latino-americano, com menos carisma e, talvez, um pouco menos de violência. Mas foi pior do que a ditadura do Estado Novo, porque sob Vargas havia também liberais no poder e não se constituiu a tese do inimigo interno. O AI-5 era uma declaração de guerra a quem divergisse. Todo crítico virava inimigo. Houve governistas dissentindo, como o presidente da Arena, o gaúcho Daniel Krieger, que passou a investidura ao sorumbático Filinto Müller, temido chefe de polícia do Estado Novo.
Depois de 1968, o Serviço Nacional de Informações (SNI) tornou-se um poder acima dos Poderes. Pairou sobre as próprias Forças Armadas. Não foram poucos os militares postos na “geladeira” e até cassados, vários dos quais entusiastas fervorosos de 1964. A luta pelo poder viciou as Forças Armadas, comprometeu a sua profissionalização. A repressão tomou proporções assustadoras e faltou nitidez de comando.
A exacerbação ideológica foi atiçada. Proibido, o movimento estudantil foi empurrado para a clandestinidade e juntado aos setores comunistas. O radicalismo oficial conseguiu transformar lacerdistas e udenistas (que em 1963 eram a direita) em quadros da esquerda radical. As correntes que se lançaram, por falta de opção, à luta armada, acabaram em tal contexto sendo úteis aos extremistas de direita. Na prática, atribuiu-se ao terrorismo no país uma dimensão maior do que teve: só no segundo semestre de 1970 explodiram 140 bombas nos EUA, número superior a todas as detonações ocorridas no Brasil, parte das quais, plantada pela direita, para acirrar a radicalização.
Nesse clima, surgiram os Doi-Codis, uma aberração, pois mesmo em guerras se respeita a Convenção de Genebra, que fixa critérios razoáveis para o tratamento de presos. O AI-5 foi carta branca para a tortura, que não foi praticada em defesa da sociedade, como alguns apregoavam, mas a serviço de governantes encastelados no poder. Nos anos seguintes, a violência envenenou a vida nacional.
No RS, o impacto foi inesquecível. Entre 1968 e princípios de 1969, oito deputados federais foram cassados. Em setembro, Carlos de Britto Velho, eleito pela governista Arena, renunciou, dizendo serem nove meses espaço necessário para nascer uma criatura humana e que fora disso já se estaria no terreno zoológico: parto de mula? Em represália, lhe tiraram a cátedra na universidade, onde, aliás, o próprio Ruy Cirne Lima, na direção do Direito, esteve ameaçado de cassação. Na Assembleia, entre titulares e suplentes, 12 perderam o mandato, todos, é claro, do MDB.
Pelas ruas, nos porões, gente sumia. Como Luiz Eurico Lisboa, irmão do músico Nei Lisboa, expulso do Colégio Julio de Castilhos por insistir em política, condenado pela Justiça Militar em 1969, optou pela clandestinidade e foi preso em circunstâncias desconhecidas em São Paulo, aos 24 anos, em 1972. Em 1979, o Comitê de Anistia localizou seu corpo, numa cova em Perus. Jorge Alberto Basso, que fazia discursos inflamados no pátio do Julinho, foi preso em Buenos Aires em 1976 e desapareceu. Raul Pont, mais tarde prefeito de Porto Alegre, foi preso em São Paulo e passou 1972 na Ilha do Presídio, no Guaíba. E assim por diante.
Em 28 de agosto de 1969, Costa e Silva, o progenitor do AI-5, sofreu um acidente cardiovascular. O vice-presidente Pedro Aleixo foi impedido de assumir, pois se recusara a assinar o rebento. Ministros militares substituíram-no: um golpe, dentro do golpe, dentro do golpe... Em 9 de outubro, o Alto Comando escolheu o general Emílio Garrastazu Médici, outro gaúcho, de Bagé. Decidiu-se reabrir o Congresso, que, obediente, referendou a opção. Nesta altura, já estávamos no AI-17... A cada um, uma ponchada de garantias liberais se esvaía pelo ralo.
Médici prometeu restabelecer a democracia. Mas seu governo foi o auge da repressão. As guerrilhas e a oposição armada foram de fato desbaratadas. A oposição consentida estava miserabilizada. Muitos, contudo, nem ligavam, pois a economia ia bem, colhendo frutos do ajuste começado por Castello: inflação baixa e crescimento acima de 10% ao ano! A classe média exultava. Obras gigantescas brotavam. A Copa do Mundo de 1970 deu um banho de ufania. Foi o Milagre Brasileiro!
Em 1973, antes da crise do petróleo, que escancarou o desenvolvimentismo artificial, espantou investidores e estourou o endividamento, prometia-se que o país seria até 2000 a terceira economia do globo, atrás dos EUA e do Japão. E o “país do futuro”, bem próximo, deveria ser deixado, caso não amado.
Nelson Rodrigues, genial intérprete das fímbrias do comportamento brasileiro, dizia que Deus mora nas coincidências. Se verdade, ajudaria a explicar como outro general gaúcho, Ernesto Geisel, desmontaria o monstro parido por Costa e Silva e surfado por Médici, aliviando o Carma coletivo.
Começou a Abertura – “lenta e gradual” –, coordenada por inteligências como Golbery do Couto e Silva (Casa Civil) e Henrique Fonseca de Araújo (Procuradoria-Geral), mais dois gaúchos! Araújo fora chefe do MP estadual e deputado destacado do velho Partido Libertador, forjado na luta contra os excessos do castilhismo e do getulismo, assim como também o eram Mem de Sá, Britto Velho e Paulo Brossard, agora senador pelo opositor MDB. Todos estiveram irmanados na derrubada do governo do gaúcho Jango, em 1964. E agora sabiam, mais do que nunca, que oposição tinha de ser respeitada, não apenas consentida, muito menos reduzida à condição de terrorista, como anos mais tarde se proporia ainda certo rebento a enxovalhar a memória dos pais. Afinal, no estado de oposição, pode estar, eventualmente, qualquer cidadão.
E se políticos ruins e fracos tornam conflitos inevitáveis, governos bons e fortes os desarmam.
Em 1º de janeiro de 1979, o habeas corpus foi restabelecido. Em agosto, foi promulgada a Lei na Anistia. Terminava o AI-5. A tanga de crochê que o ex-guerrilheiro e exilado Fernando Gabeira desfilou na Praia de Ipanema foi o símbolo do Verão da Abertura. Começava um novo ano, daqueles... Greves endêmicas, inflação galopante, dívida explosiva, bombas da direita, recessão, instabilidade institucional. Foi preciso passar pela Constituinte de 1987 e um impeachment para pacificar a nação. E o ano só terminou, mesmo, em 1994, com o Plano Real. Estabilidade da economia e das instituições, respeito à oposição e à diferença, foram conquistas da jovem democracia que emergiu no Brasil sobre os escombros ainda fumegantes do AI-5.